Bougie e Via Aérea

Criado em: 19 de Fevereiro de 2024 Autor: João Mendes Vasconcelos

O bougie ou guia elástico de intubação foi desenvolvido para aumentar a chance de intubar na primeira tentativa. Inicialmente aplicado em vias aéreas difíceis, há quem indique o bougie em toda intubação. Um nova revisão sistemática e metanálise de autores brasileiros avaliando o benefício do bougie foi publicada em fevereiro de 2024 no Annals of Emergency Medicine [1]. Este tópico revisa o tema e os resultados do estudo.

O que é um bougie?

O bougie é um introdutor de tubo orotraqueal flexível com 50 a 70 cm de comprimento (figura 1). Esse instrumento foi inicialmente desenvolvido para facilitar a intubação de vias aéreas com visualização limitada da glote, especialmente aquelas com Cormack-Lehane III. Deve ser introduzido diretamente na traquéia durante a laringoscopia, em seguida o tubo é passado utilizando o bougie como condutor, em uma técnica similar à de Seldinger.

Um bougie é diferente de um fio guia. O fio guia é uma estrutura semi-rígida que já vai introduzida no tubo orotraqueal desde o início. A ideia do fio guia é moldar e conferir rigidez ao tubo, facilitando o direcionamento e passagem do tubo pelas cordas vocais. Uma vez passadas as cordas vocais, o fio guia é retirado e o tubo é introduzido até a profundidade desejada. O fio guia é a escolha preferencial em videolaringoscópios com lâminas hiperanguladas, pois pode se moldar melhor à lâmina e intubar com maior facilidade. Veja mais no tópico sobre videolaringoscopia no doente crítico.

A ponta do bougie tem um leve ângulo de 30º (figura 1). Esse ângulo favorece o direcionamento para a glote, que pode estar escondida atrás da epiglote. Além disso, se o bougie estiver dentro da traqueia, o ângulo aumenta a chance de a ponta do instrumento tocar os anéis traqueais, informando o laringoscopista que a via aérea foi acessada.

Figura 1
Bougie
Bougie

Os bougies variam de tamanho, tendo inclusive modelos pediátricos, mas os adultos geralmente aceitam bem tubos de tamanho 6.0 ou maiores. Podem ser feitos de vários materiais e alguns são fenestrados na extremidade distal para permitir oxigenação através do bougie. Alguns bougies podem ser esterilizados e reutilizados, porém podem sofrer mudanças nas suas características com esterilizações sucessivas [2].

Técnica e armadilhas

A técnica padrão de intubação com bougie envolve duas pessoas. Após conseguir a melhor visão com a laringoscopia, o bougie é introduzido na traquéia, idealmente com a ponta curva virada para a região anterior. Em seguida, um assistente insere a extremidade distal do tubo na extremidade proximal do bougie e progride o tubo (figura 2). Após a progressão do tubo, o bougie é retirado.

Figura 2
Inserção do tubo orotraqueal pelo bougie
Inserção do tubo orotraqueal pelo bougie

O bougie fornece dois sinais que podem informar que a via aérea foi acessada mesmo na ausência de visualização. O primeiro são os cliques dos anéis traqueais. Por ter a ponta curva, o bougie pode tocar os anéis traqueais durante a introdução e o laringoscopista sentir a vibração. O segundo é o sinal da parada ou "stop sign". Se estiver na via aérea, o bougie irá parar de progredir quando a via aérea reduzir de calibre. Isso não acontece se ele estiver no esôfago.

Existem duas dificuldades comuns durante o aprendizado do uso do bougie:

  • Retirar o laringoscópio após a passagem do bougie. Esse é um reflexo habitual de quem não está acostumado a usar o instrumento, já que é o movimento feito quando se passa o tubo orotraqueal diretamente. Tentar passar o tubo pelo bougie sem manter a laringoscopia não é recomendado, já que as partes moles vão ceder, dificultando a introdução e aumentando a chance de trauma na via aérea.
  • Dificuldade de introdução por choque do tubo com as aritenóides. Quando isso ocorrer, o recomendado é regredir um pouco o tubo, girar 90 graus no sentido anti-horário e tentar progredir de novo. Esse problema ocorre em média em 7% dos casos [3].

Em um cenário com poucas pessoas para ajudar na intubação, existem técnicas de intubação com bougie sem a necessidade de um auxiliar. Em uma delas, o laringoscopista introduz o bougie na traqueia com o tubo orotraqueal já inserido na parte proximal do bougie (figura 3). Uma vez que o bougie acessou a via aérea, insere-se o tubo que irá percorrer o trajeto do bougie.

Figura 3
Técnicas de inserção do tubo orotraqueal já conectado ao bougie
Técnicas de inserção do tubo orotraqueal já conectado ao bougie

O bougie também pode ser utilizado para realização de cricotireoidostomia e para trocar o tubo orotraqueal.

Veja um vídeo da Emergência OMNI exemplificando a técnica de intubação com bougie, os sinais de confirmação da via aérea e as dificuldades mencionadas anteriormente.

Evidência atual

A maior parte da evidência atual é consistente em apontar o benefício do bougie em intubações com visualizações limitadas da glote, especialmente Cormack Lehane III [4-6]. Em outras situações com visualização reduzida (edema, redução da abertura da boca, distorções, imobilização cervical) o bougie também pode auxiliar.

Em pacientes que serão intubados com videolaringoscópio hiperangulado, o bougie não é a melhor opção [7]. A escolha nesses casos é o fio guia, pois pode se moldar melhor à lâmina e intubar com maior facilidade. Veja mais no tópico videolaringoscopia no doente crítico.

O debate atual é se o bougie deveria ser usado de rotina em todas as intubações. O estudo BEAM, publicado em 2018, comparou bougie versus fio guia de rotina para todas as intubações [3]. O trabalho foi realizado em apenas um centro, onde todas as intubações eram realizadas por emergencistas treinados e praticamente todas com videolaringoscópio. Avaliando todas as 750 intubações do estudo, a probabilidade de intubação na primeira tentativa foi maior com o bougie (98% vs 87%). Essa diferença foi maior quando o paciente apresentava pelo menos um preditor de via aérea difícil (96% vs 82%). O tempo de intubação não diferiu significativamente entre os grupos.

O estudo BOUGIE, publicado em 2021, encontrou resultados diferentes [8]. Esse trabalho foi multicêntrico envolvendo 15 locais (UTI e sala de emergência) comparando novamente bougie contra fio guia em todas as intubações. Não houve diferença em intubação na primeira tentativa entre os dois grupos - 80% no grupo bougie e 83% no fio guia. O resultado se manteve mesmo quando analisados apenas os pacientes com preditores de dificuldade ou com visualização limitada da via aérea.

Parte da diferença entre os estudos pode ser explicada pela falta de prática com o instrumento no estudo BOUGIE. Apenas nove dos 15 centros utilizavam o bougie de rotina antes do trabalho e a mediana de uso do bougie por laringoscopista antes do estudo foi de 10.

O novo estudo

Essa revisão sistemática e metanálise feita por autores brasileiros reuniu 18 trabalhos avaliando o bougie, sendo 12 ensaios clínicos (incluindo o BEAM e o BOUGIE). Utilizando os 18 estudos (9150 pacientes) o bougie se associou a maior chance de intubação na primeira tentativa (risco relativo de intubação na primeira tentativa de 1,11). O resultado se manteve favorável ao bougie quando foram analisados apenas os ensaios clínicos e quando foram avaliados métodos diferentes de intubação (laringoscopia direta vs videolaringoscopia) e cenários diferentes (pré hospitalar, emergência, UTI). Quando avaliado apenas as intubações com Cormack Lehane III ou IV, o efeito do auxílio do bougie foi maior (risco relativo de 1,6). O bougie se associou a um pequeno aumento do tempo para intubação - um aumento máximo de 13 segundos nos estudos de sala de emergência.

Essa revisão sinaliza um benefício do bougie em todas as intubações, especialmente aquelas com visualização limitada. Porém, se esse instrumento for reservado apenas para os pacientes com preditores de dificuldade, será que os laringoscopistas terão a facilidade de manuseio necessária quando a hora chegar? Além disso, os preditores de dificuldade são imperfeitos, e vias aéreas desafiadoras ocorrem em muitos pacientes sem sinais prévios de dificuldade. Nessa linha, os achados dessa revisão reforçam o argumento que propõe a adoção do bougie em todas as intubações.

Investigação de Nódulo Tireoidiano - Diretriz Europeia de 2023

Criado em: 19 de Fevereiro de 2024 Autor: Ingrid Fröehner

Cerca de 60% da população adulta tem um ou mais nódulos de tireoide. Em outubro de 2023 a Associação Europeia de Tireoide publicou uma diretriz sobre investigação e manejo dos nódulos da tireoide [1]. Esse tópico resume as principais informações da publicação.

Avaliação inicial dos nódulos da tireoide

Todos os pacientes com suspeita ou confirmação de nódulo tireoidiano devem ser avaliados com anamnese e histórico familiar, exame físico, dosagem de TSH e ultrassom de tireoide (USG). A anamnese em relação aos sintomas de nódulo pode ser estruturada com a ferramenta ThyPRO-39 BR, validada para o português do Brasil [2] (veja o aplicativo ThyPRO-39BR).

A dosagem do TSH ajuda na determinação de exames adicionais e deve ser feita em todos os pacientes. Naqueles com TSH normal ou elevado, a próxima etapa é a estratificação do nódulo por ultrassom de tireoide. O USG avalia características de malignidade ou benignidade e a necessidade de punção por agulha fina (PAF).

Já em pacientes com TSH baixo, a cintilografia (usualmente com 99 mTc) deve ser realizada para diferenciar nódulos hipocaptantes de hipercaptantes. Nódulos hipercaptantes raramente estão relacionados à malignidade e normalmente não necessitam de investigação adicional com punção por agulha fina (PAF). Nódulos hipocaptantes ou indeterminados devem seguir avaliação com USG de tireoide para avaliar a necessidade de PAF. O fluxograma 1 resume a abordagem sequencial dos exames.

Fluxograma 1
Fluxograma de investigação de nódulos tireoidianos
Fluxograma de investigação de nódulos tireoidianos

A indicação de cintilografia também depende da prevalência de deficiência de iodo na populção - essa informação pode ser consultada neste mapa sobre nutrição e iodo mundial. Em regiões com deficiência com iodo, mesmo os pacientes com TSH normal têm indicação de cintilografia, devido ao aumento da prevalência de nódulos autônomos funcionantes com TSH nestas regiões.

Além da indicação em nódulos com TSH baixo, em regiões com iodo suficiente, como no Brasil, a cintilografia também pode ser útil nas seguintes situações:

  • Bócio multinodular - para diferenciar nódulos hipofuncionantes (indicação de PAF) de hiperfuncionantes (sem indicação de PAF);
  • Nódulos hiperfuncionantes e hipofuncionantes benignos - para determinar a indicação de radioiodoterapia, como alternativa terapêutica à cirurgia;
  • PAF com citologia indeterminada - para ajudar a afastar neoplasia, já que a cintilografia tem alto valor preditivo negativo para malignidade.

Quando solicitar e como interpretar o ultrassom de tireoide?

O ultrassom de tireoide deve ser realizado em todos os pacientes com suspeita de nódulo ou quando um nódulo foi encontrado incidentalmente durante outros exames de imagem. O ultrassom classifica o risco de malignidade de acordo com a escala TIRADS (Thyroid Imaging and Report Data System) e define a necessidade de PAF. A tabela 1 traz a versão europeia da classificação (EU-TIRADS).

Tabela 1
Classificação EU-TIRADS, risco de malignidade correspondente e manejo
Classificação EU-TIRADS, risco de malignidade correspondente e manejo

O TIRADS foi desenvolvido para detectar carcinomas papilíferos e possui boa sensibilidade para essa função. Embora o escore se proponha a estimar o risco de qualquer neoplasia da tireoide, a sensibilidade é menor para a variante folicular do carcinoma papilífero e para o carcinoma folicular da tireoide. A acurácia em identificar carcinoma medular da tireoide é discutível.

Pacientes com nódulo e histórico familiar de neoplasia medular ou neoplasia endócrina múltipla 2 (NEM-2) têm alta probabilidade de carcinoma medular de tireoide. Nesses casos, a diretriz indica a dosagem de calcitonina. Valores acima de 30 pg/mL em mulheres e acima de 34 pg/mL em homens estão associados à neoplasia. O uso de calcitonina para rastreio de câncer medular da tireoide é tópico de debate e a diretriz recomenda a dosagem em outras duas situações:

  • Nódulos de tireoide com indicação cirúrgica ou de procedimentos minimamente invasivos;
  • Nódulos com citologia indeterminada ou achados suspeitos ao USG.

Sinais sugestivos de extensão extra tireoidiana, como abaulamento ou ruptura capsular pelo nódulo tireoidiano, indicam PAF independente do escore TIRADS. Esses achados são altamente sugestivos de malignidade.

Punção por agulha fina e biópsia - quando solicitar e como interpretar?

A PAF é indicada com base no escore EU-TIRADS (tabela 1) e outros fatores de risco (tabela 2). Nódulos hiperfuncionantes não devem ser puncionados, a menos que altamente sugestivos de malignidade.

Tabela 2
Outros fatores considerados na indicação de punção por agulha fina (PAF)
Outros fatores considerados na indicação de punção por agulha fina (PAF)

A PAF utiliza uma agulha fina para coletar células do nódulo - como demonstrado no vídeo sobre PAF. As células estudadas pela PAF estão dispersas, sem preservação da arquitetura tecidual, sendo um exame que analisa a citologia do nódulo. Por outro lado, a biópsia analisa uma amostra maior com preservação da arquitetura tecidual, oferecendo detalhes sobre a histologia e patologia da lesão. Em relação à investigação de nódulo da tireoide, não houve diferença em desempenho diagnóstico entre PAF e biópsia, sendo a PAF menos invasiva e mais barata [3].

A amostra colhida por PAF é classificada conforme o sistema Bethesda (tabela 3), estratificando os achados em risco de malignidade e indicação de cirurgia.

Tabela 3
Classificação Bethesda, risco de malignidade e manejo
Classificação Bethesda, risco de malignidade e manejo

Em alguns casos, a PAF deve ser repetida. As principais indicações de novo exame incluem:

  • Primeira amostra não diagnóstica;
  • Citologia Bethesda III;
  • Discrepância de risco entre EU-TIRADS e classificação citológica (Bethesda).

Apesar da PAF ser suficiente para a maioria dos casos, a biópsia pode ser considerada nas seguintes situações:

  • Amostra repetida com PAF inadequada;
  • Amostra repetida com Bethesda III;
  • Quando a amostra auxilia no diagnóstico pré cirúrgico: suspeita de nódulo pouco diferenciado ou indiferenciado, linfoma de tireoide ou metástase de tireoide.

Quando realizar acompanhamento clínico e quando indicar cirurgia?

O acompanhamento clínico sem intervenção terapêutica é indicado a depender da classificação de EU-TIRADS e Bethesda (nos nódulos que foram puncionados) (tabela 1 e tabela 3). Recomenda-se monitoramento de quatro características:

  • Sintomas na modificação da voz ou pressão local;
  • Presença de linfonodos cervicais laterais palpáveis;
  • Tamanho do nódulo, para avaliar crescimento de 20% em duas dimensões ou 50% em volume;
  • Mudança das características ultrassonográficas que alterem a estratificação de risco de neoplasia.

Para os pacientes com indicação de intervenção, existem três opções: radioiodoterapia, procedimentos minimamente invasivos, ou cirurgia.

A radioiodoterapia é indicada para tratar nódulos hiperfuncionantes. Outra indicação são nódulos sintomáticos benignos em pacientes com alto risco cirúrgico, independente de serem hiperfuncionantes. A maioria dos pacientes não desenvolve hipotireoidismo após as sessões e o volume tireoidiano pode reduzir em 30 a 50% em um ano.

Procedimentos minimamente invasivos são opções para nódulos tireoidianos que causam pressão local ou preocupações estéticas. Os procedimentos são feitos ambulatorialmente e incluem injeções diretas de etanol, aplicação de laser, radiofrequência, micro-ondas ou ultrassom de alta intensidade focalizado.

A cirurgia é indicada principalmente nos seguintes cenários:

  • Nódulos com alta suspeita ou confirmação de malignidade, conforme Bethesda V e VI;
  • Nódulos com citologia indeterminada (Bethesda III e IV) que não são adequados a seguimento clínico, devido ao tamanho, suspeita de malignidade ao USG ou sintomáticos;
  • Nódulos com classificação citológica (Bethesda) benigna e/ou baixo risco ao ultrassom que se tornam sintomáticos ao longo do tempo;
  • Nódulos sintomáticos, como alternativa a procedimentos minimamente invasivos ou radioiodoterapia.

Profilaxia Primária de Trombose no Paciente com Câncer

Criado em: 19 de Fevereiro de 2024 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

Pacientes com neoplasia possuem alto risco para desenvolvimento de eventos tromboembólicos. Encontrar o grupo que mais se beneficia de profilaxia primária é uma tema recorrente em diversos estudos nos últimos anos. O trabalho TARGET-TP, publicado na JAMA em novembro de 2023, propôs uma nova estratégia para identificar esses pacientes [1]. Esse tópico revisa o tema e os resultados do estudo.

Risco de tromboembolismo e neoplasia

Neoplasia é um dos principais fatores de risco para tromboembolismo venoso (TEV). O risco pode se elevar em até 14 vezes quando comparado com pessoas da mesma idade e sem câncer [2]. A ocorrência de TEV está relacionada com mais internações, idas ao pronto-socorro, atrasos no tratamento oncológico e é uma das principais causas de óbito nesses pacientes.

O risco é mais elevado nas neoplasias de pâncreas, estômago e nos primários de sistema nervoso central. Neoplasias de mama, próstata, pele e tumores endócrinos têm risco menor [3]. Mais de 50% dos casos de tromboses ocorrem nos primeiros três meses do diagnóstico ou do início do tratamento [4 ,5]. Esse risco tem se elevado nos últimos anos, uma tendência em parte atribuída às novas terapias para câncer [3].

Na última década vários trabalhos tentaram identificar qual subgrupo de pacientes com câncer se beneficia de profilaxia primária para TEV. A decisão de anticoagular de forma profilática precisa ser contrabalanceada com o aumento do risco de sangramento.

Para pacientes que já tiveram um TEV, a anticoagulação deve ser mantida enquanto a neoplasia for considerada ativa. Comentamos mais sobre profilaxia secundária e sobre profilaxia no paciente internado no tópico Tromboembolismo no Paciente com Câncer.

Escore de Khorana e sua aplicação

Um dos escores mais estudados nessa situação é o Khorana escore (tabela 1) [6]. Ele define os pacientes de alto risco quando a pontuação é ≥ 2. O escore é composto pelas seguintes variáveis: sítio primário da neoplasia, alterações do hemograma e IMC. Um dos problemas do Khorana score é que no estudo de validação inicial os pacientes com neoplasia renal e neoplasia de sistema nervoso central foram sub-representados. Por isso, apesar de serem neoplasias com risco elevado de TEV, elas não entraram no escore original.

Tabela 1
Escore de Khorana
Escore de Khorana

Os estudos CASSINI e o AVERT utilizaram o Khorana para estratificação do risco de TEV. Ambos foram publicados em 2019 na mesma edição do New England Journal of Medicine.

O CASSINI randomizou rivaroxabana na dose de 10 mg ao dia ou placebo [7]. A população estudada incluía pacientes com neoplasia em tratamento com quimioterapia e que possuíam Khorana ≥ 2. O desfecho primário avaliado foi a incidência de TEV nos primeiros 180 dias. Com 1080 pacientes, não houve diferença significativa na incidência de TEV entre os grupos controle e intervenção. Sangramentos maiores ocorreram em 2% dos pacientes da intervenção e 1% do placebo, porém sem significância estatística.

Já o AVERT selecionou o mesmo perfil de pacientes, só que dessa vez randomizou para apixabana ou placebo [8]. A dose do apixabana foi 2,5 mg duas vezes ao dia. O desfecho também foi a ocorrência de TEV em 180 dias. Com 574 pacientes, o estudo encontrou benefício com o uso da apixabana, com maiores taxas de sangramento no grupo intervenção (3,5 x 1,8%).

Uma metanálise de 2020 selecionou seis trabalhos sobre o tema, incluindo CASSINI e AVERT [9]. Com um total de 4626 pacientes, o uso de DOAC ou enoxaparina foi capaz de reduzir o risco de TEV. O menor NNT foi de 17, visto em pacientes com escore de Khorana de 3 ou mais.

A diretriz da American Society of Hematology coloca como recomendação fraca a profilaxia primária com DOAC ou enoxaparina em pacientes de alto risco para TEV [10]. Os autores apontam que um escore validado (como o Khorana) deve ser usado para identificar esses pacientes e que apenas rivaroxabana e apixabana foram testadas entre os DOAC.

O que o trabalho mostrou?

O trabalho TARGET-TP é um ensaio clínico randomizado australiano que avaliou pacientes com neoplasia de pulmão e trato gastrointestinal [1]. O estudo estratificou pacientes como de alto risco se apresentassem valores elevados de fibrinogênio ou d-dímero antes do tratamento neoplásico ou um mês após o início do tratamento. Um paciente era considerado de alto risco se tivesse um dos critérios:

  • Antes do tratamento, fibrinogênio acima de 400 mg/dL e d-dímero acima de 0,5 μg/ml
  • Antes do tratamento, d-dímero acima de 1,5 μg/ml
  • Após um mês de tratamento, d-dímero acima de 1,5 μg/ml

Os pacientes de alto risco eram randomizados para receber dose profilática de enoxaparina (40 mg subcutâneo diária) ou não receber nenhuma profilaxia (grupo controle de alto risco). Pacientes que não apresentavam esses exames alterados, foram considerados de baixo risco e também foram seguidos como um grupo controle de baixo risco.

O desfecho primário do trabalho foi a presença de eventos tromboembólicos (trombose venosa profunda, tromboembolismo pulmonar ou tromboembolismo arterial) em 180 dias. Com 328 pacientes randomizados, a taxa de tromboembolismo ocorreu em 8% no grupo alto risco que recebeu profilaxia, em comparação a 23% do grupo de alto risco que não recebeu profilaxia. Houve diferença estaticamente significativa e o NNT para evitar um evento tromboembólico foi de 6.7. O grupo baixo risco apresentou uma incidência de 8% de eventos tromboembólicos.

Em relação a desfechos de segurança, a taxa de sangramento foi similar, com incidência de 2% ou menos em todos os grupos.

Esse é o menor NNT visto em estudos de tromboprofilaxia primária em pacientes oncológicos. O trabalho indica que pacientes com câncer com alto risco de TEV podem ser identificados com a ajuda de exames, mas deixa algumas dúvidas. Esses critérios funcionam em outros tipos de neoplasia? Os achados serão replicados em outros estudos? A tromboprofilaxia pode ser feita com remédios orais, como um DOAC? Enquanto novos estudos não respondem essas perguntas, é necessário oferecer aos pacientes o que já se sabe sobre profilaxia primária de TEV no paciente com câncer.