Diretriz de Dissecção de Artérias Cervicais 2024 AHA/ASA

Criado em: 31 de Março de 2024 Autor: João Urbano

A dissecção de artérias cervicais pode representar até 25% de todos os acidentes vasculares cerebrais (AVC) em pacientes com menos de 50 anos de idade. A condição pode acometer tanto a circulação anterior, pela artéria carótida interna (ACI), como a circulação posterior, pelas artérias vertebrais. Esse tópico revisa a nova diretriz publicada na Stroke em fevereiro de 2024 [1].

AVC isquêmico em jovem: como abordar?

Pessoas com menos de 50 anos raramente são acometidas por AVC, com incidência aproximada de 8 a cada 100.000 habitantes em países de alta renda. A avaliação e condutas iniciais não mudam nessa população. No entanto, a investigação da causa do AVC tem particularidades que modificam a profilaxia secundária recomendada.

Nos jovens, há uma ocorrência menor das causas tradicionais de AVC - aterosclerose de grandes vasos, doença de pequenos vasos ou embolia cardíaca. Cerca de 50% dos AVC em pacientes com idade média de 70 anos são por causas tradicionais, já naqueles com menos de 50 anos essas causas explicam apenas 30% dos eventos [2, 3]. Isso significa que mais pacientes jovens têm o mecanismo do AVC "indeterminado" ou como "outras causas" - conforme o sistema de classificação TOAST.

Tabela 1
Outras causas selecionadas de AVC em jovem com pistas clínicas e investigação
Outras causas selecionadas de AVC em jovem com pistas clínicas e investigação

Analisando as causas individuais, a dissecção de artérias cervicais é a principal causa identificada na população jovem, representando até 25% dos casos de AVC em jovens. Outras causas são importantes e devem ser pesquisadas ativamente. Confira na tabela 1.

Como diagnosticar uma dissecção de artérias cervicais

Diversas condições são fatores de risco ou predisponentes para dissecção de artérias cervicais, como expostos na tabela 2. A maioria das dissecções envolve algum trauma, seja intenso ou leve, como movimentar o pescoço para desviar de um objeto ou checar o banco de trás do carro. Perguntar ativamente sobre traumas craniocervicais, posições não usuais como hiperextensão ou flexão do pescoço ou manipulação cervical, pode ajudar na suspeita.

Tabela 2
Fatores de risco para dissecção de artérias cervicais
Fatores de risco para dissecção de artérias cervicais

A maioria dos pacientes tem sintomas inespecíficos que precedem a ocorrência de AVC. Até 65% dos pacientes podem apresentar dor facial, cefaleia frontotemporal e síndrome de Horner (na dissecção carotídea) ou dor cervical e occipital (na dissecção vertebral) antes da ocorrência do AVC. No entanto, somente cerca de 3% dos pacientes procuram atendimento médico antes da ocorrência de isquemia cerebral.

Figura 1
Dissecção da artéria carótida interna
Dissecção da artéria carótida interna

A artéria mais acometida por dissecções é a artéria carótida interna (ACI) na sua porção cervical. O principal mecanismo de AVC na dissecção é a embolia arterio-arterial. Isso ocorre por formação de trombos no falso lúmen, que são então embolizados e podem ocluir vasos após a dissecção (veja figura 1).

Apesar de haver suspeita pela história, a imagem é a principal ferramenta diagnóstica. O exame mais utilizado é a angiotomografia de artérias cervicais e intracranianas.

Figura 2
Achados de imagem da dissecção de carótida
Achados de imagem da dissecção de carótida

Os principais achados de imagem estão relacionados à formação de um falso lúmen da artéria acometida. É possível ver a formação de um flap intimal (deslocamento da camada íntima do vaso para o lúmen) e interrupção do vaso com um aspecto de “chama de vela”, pela oclusão progressiva do lúmen verdadeiro da artéria (veja figura 2 e figura 3). No corte axial, a separação da íntima é vista como um espessamento em formato de crescente.

Figura 3
Sinais radiológicos da dissecção de artérias cervicais
Sinais radiológicos da dissecção de artérias cervicais

A oclusão cardioembólica de vasos calibrosos (carótida interna intracraniana, parte proximal da cerebral média e basilar) pode formar uma imagem de pseudo-oclusão da carótida interna extracraniana ou das vertebrais com aspecto em "chama de vela", similar ao de dissecções. Isso ocorre por obstrução ao fluxo de contraste. A interpretação desses casos deve ser cuidadosa, tentando diferenciar uma dissecção que levou a embolização arterio-arterial distal de um cardioembolismo que ocasionou imagem de chama de vela proximal à obstrução.

Figura 4
Sinais radiológicos da dissecção de artérias cervicais
Sinais radiológicos da dissecção de artérias cervicais

Há ferramentas adicionais na avaliação por ressonância magnética. Estudos de parede de vasos podem ser realizados, com o intuito de identificar trombos ou hemorragia na parede das artérias nas sequências ponderadas em T1 e estudos dedicados como o vessel wall (veja figura 4).

Como tratar uma dissecção de artérias cervicais e estabelecer profilaxia secundária

O tratamento agudo é o mesmo de outras causas de AVC isquêmico. O paciente deve receber os tratamentos de reperfusão agudas que for candidato. As indicações de trombólise pode ser vistas neste vídeo. As indicações de trombectomia foram comentadas no tópico AVC Isquêmico Maligno.

Como em todo AVC, deve-se estabelecer um plano de prevenção secundária de acordo com o mecanismo do evento. Na dissecção de artérias cervicais, o mecanismo envolvido em 85% dos casos é a embolia arterio-arterial, em que um trombo é formado no sítio de dissecção para então embolizar e ocluir um vaso mais distal. Existe dúvida de qual estratégia de profilaxia secundária é a mais benéfica: antiagregação ou anticoagulação?

Vários trabalhos foram desenhados para responder essa questão, dentre eles o CADISS, TREAT-CAD e o mais recente STOP-CAD, publicado em fevereiro de 2024. Uma sugestão de tratamento está exemplificada no fluxograma 1 [4-6]. Os estudos continham falhas metodológicas importantes, principalmente a heterogeneidade do grupo antiagregação no CADISS. Todos falharam em demonstrar não inferioridade de antiagregação em relação à anticoagulação, mas delimitou-se um pouco melhor que perfil de paciente se beneficia mais de cada estratégia.

Fluxograma 1
Escolha de profilaxia secundária de AVC com dissecção de artérias cervicais
Escolha de profilaxia secundária de AVC com dissecção de artérias cervicais

Cerca de 30% dos pacientes com oclusão completa no primeiro momento apresentaram recanalização com tempo médio de quatro meses. Após seis meses do diagnóstico, não há relação entre a doença arterial residual e risco de recorrência de AVC. Recorrência de dissecção é um evento raro, ocorrendo em 3,3% no seguimento de três anos.

Síndromes e Cenários

Leucemia Linfocítica Crônica

Criado em: 31 de Março de 2024 Autor: Pedro Rafael Del Santo Magno

A leucemia linfocítica crônica é a leucemia mais comum do mundo. O Journal of the American Medical Association (JAMA) realizou uma revisão em 2023 sobre o diagnóstico e tratamento dessa condição [1]. Esse tópico traz as principais informações sobre manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento dessa condição.

O que é leucemia linfocítica crônica e quais as principais manifestações clínicas?

A leucemia linfocítica crônica (LLC) é a leucemia mais comum, acometendo pessoas mais idosas, com idade média ao diagnóstico de 70 anos. É uma doença de avanço lento, com uma sobrevida de aproximadamente 90% em 5 anos e 82% em 10 anos [1].

A doença é caracterizada por um acúmulo de linfócitos B maduros, porém imunologicamente disfuncionais. Os pacientes com LLC têm resposta imune celular e humoral anormais às infecções e vacinas.

Aproximadamente 70% dos pacientes recebem o diagnóstico de LLC no contexto de uma linfocitose no hemograma, sem apresentar sintomas. Entre os sintomáticos, a queixa mais comum é linfadenopatia, seguida de hepatoesplenomegalia e de sintomas B (perda de peso, febre, sudorese, fadiga - veja tabela 1).

Tabela 1
Prevalência de sintomas na leucemia linfocítica crônica
Prevalência de sintomas na leucemia linfocítica crônica

Nos pacientes sintomáticos, a presença de citopenias é comum. A redução de linhagens celulares pode ocorrer por acometimento medular da doença ou por destruição periférica, através de anemia hemolítica e plaquetopenia autoimunes, ambas secundárias a LLC.

Uma complicação que ocorre em 10% dos pacientes é a transformação para um linfoma agressivo, conhecida como transformação de Richter. O linfoma difuso de grande células B (LDGCB) corresponde a 90% desses linfomas, enquanto que o linfoma de hodgkin aos 10% restantes.

Como é feito o diagnóstico de leucemia linfocítica crônica?

O diagnóstico é feito quando o paciente apresenta linfócitos monoclonais acima de 5000/uL de maneira persistente por três meses [2]. A confirmação que os linfócitos são monoclonais e compatíveis com LLC é feita pela imunofenotipagem, geralmente através da citometria de fluxo do sangue periférico. Na citometria de fluxo, um painel de anticorpos é utilizado e as células de LLC mostram marcadores típicos de linfócitos B, além de outros que caracterizam essa condição. O diagnóstico também pode ser considerado na ocorrência de alguma citopenia que a análise da medula indica infiltração de linfócitos típicos da doença.

Alguns pacientes têm linfocitose em valores menores que 5000/uL e sem citopenia, porém com linfócitos com o mesmo imunofenótipo de LLC. Nessa situação, existem dois diagnósticos possíveis:

  • Se o paciente for assintomático, considera-se uma linfocitose B monoclonal. Esses pacientes têm taxa de transformação para LLC de 1% a 2% ao ano.
  • Quando ocorre linfadenopatia ou acometimento extra-nodal, o diagnóstico é de linfoma linfocítico de pequenas células.

Caso a citometria de fluxo esteja indisponível, é necessário descartar explicações alternativas de linfocitose. As principais condições que devem pesquisadas são infecções virais (citomegalovírus, HIV, vírus de Epstein-Barr, sarampo, influenza), infecções não virais (toxoplasmose, coqueluche, doença da arranhadura do gato), drogas (fenitoína) e doenças autoimunes (artrite reumatoide). Na imunofenotipagem, essas condições apresentam linfocitose policlonal.

Outras doenças podem manifestar linfocitose monoclonal e precisam ser afastadas, como leucemia de células pilosas, manifestações leucêmicas de linfoma de células de manto, linfoma de zona marginal e linfoma folicular. Essa diferenciação pode ser realizada através da análise morfológica de sangue periférico (esfregaço), imunofenotipagem e, em casos mais duvidosos, por diferenças genéticas entre as células linfóides circulantes.

Como é o tratamento de leucemia linfocítica crônica?

O tratamento de pessoas assintomáticas não é indicado. Dessa maneira, 70% a 80% dos pacientes não precisam de tratamento no momento do diagnóstico. Considerando a idade avançada e o comportamento insidioso da doença, 30% dos pacientes nunca precisarão de tratamento.

Mesmo sem terapia imunossupressora, todo paciente com LLC é considerado imunossuprimido. Todos devem ser orientados sobre risco de infecções e evitar vacinas de vírus atenuados. Pacientes com infecções de repetição devem ter o IgG dosado e, se estiver abaixo de 500 mg/dl, há recomendação de reposição de imunoglobulina.

O tratamento é indicado quando o paciente apresenta complicações da LLC:

  • Citopenias - principalmente hemoglobina < 10 g/dL ou plaquetas < 100.000/μL
  • Linfadenopatia sintomática - especialmente se maior que 10 cm
  • Hepatoesplenomegalia sintomática - baço palpável a mais que 6 cm do rebordo costal
  • Infecções de repetição
  • Anemia ou plaquetopenia autoimune relacionadas à LLC

Não há um tratamento padrão e consensual para todos os pacientes com LLC sintomática. As principais opções terapêuticas envolvem:

  • Inibidores da tirosina quinase de bruton - uso contínuo
  • Venetoclax com obinutuzumabe - por tempo limitado
  • Venetoclax com ibrutinibe - por tempo limitado

Os inibidores da tirosina quinase de Bruton (BTK) são um dos alicerces do tratamento, sendo utilizados de maneira contínua. Os principais medicamentos dessa classe são ibrutinibe, acalabrutinibe e zanubrutinibe. Os eventos adversos mais preocupantes são fibrilação atrial e taquicardia ventricular. Esses medicamentos também aumentam o risco de sangramentos e devem ser interrompidos de 3 a 7 dias antes de procedimentos cirúrgicos. Esses efeitos adversos são mais frequentes com o ibrutinibe.

O venetoclax é o único representante dos inibidores de BCL2. Esse medicamento está associado a um alto risco de síndrome de lise tumoral e a dose precisa ser aumentada progressivamente no início do tratamento. Caso a dose seja interrompida por mais de uma semana, a avaliação de um hematologista é necessária para discutir a reintrodução. A terapia com venetoclax é realizada por um ano e pode ser feita em conjunto com o anticorpo monoclonal anti-CD20, como o obinutuzumabe.

As opções de medicação anti-CD20 incluem o rituximabe, o obinutuzumabe e o ofatumumabe. Os pacientes podem apresentar reações infusionais como febre, flushing, mudanças na pressão arterial ou frequência cardíaca. Antes de receberem esses medicamentos, os pacientes devem ser rastreados para infecção por hepatite B, e se confirmada, deve ser tratada.

No passado, já foram primeira linha de tratamento agentes quimioterápicos como ciclofosfamida, fludarabina e outros. Essas opções se mostraram inferiores à terapia com venetoclax e inibidores de BTK, e são utilizadas se não houver disponibilidade das drogas mais novas ou em casos refratários.

Todas essas opções terapêuticas têm como objetivo a remissão da doença. A cura pode ser atingida apenas em alguns pacientes que são submetidos ao transplante alogênico de medula óssea. Esta é uma opção em pacientes refratários ou com doença de alto risco considerados elegíveis para o transplante [3, 4]. Apesar do potencial de cura, a alta mortalidade e morbidade relacionada ao transplante é uma barreira. Isto é relevante para pacientes idosos ou com múltiplas comorbidades, o que é comum na população com LLC.

Terapia de Ressincronização Cardíaca na Insuficiência Cardíaca

Criado em: 31 de Março de 2024 Autor: Lucca Cirillo

A terapia de ressincronização cardíaca é uma das opções de tratamento da insuficiência cardíaca de fração de ejeção reduzida (ICFER). Em janeiro de 2024, o New England Journal of Medicine (NEJM) publicou os resultados de um estudo dessa terapia na ICFER. Este tópico revisa os principais dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis e o seu papel na ICFER [1].

Terapia de ressincronização cardíaca e outros dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis

A terapia de ressincronização cardíaca (TRC) é uma intervenção feita por um dispositivo cardíaco eletrônico implantável (DCEI). Além dos ressincronizadores, outros DCEI são os marcapassos (MP) e o cardiodesfibrilador implantável (CDI).

Os MP são usados para controle de ritmo especialmente em pacientes com bradiarritmias. A principais indicações são as seguintes:

  • Doença do nó-sinusal;
  • Bloqueio atrio-ventricular (BAV) do segundo-grau MOBITZ II;
  • BAV avançado e BAV total (BAVT).

Existem MP com eletrodos apenas no ventrículo ou átrio direito (unicamerais) e MP com eletrodos nas duas câmaras direitas (bicamerais). Em geral, os MPs bicamerais são preferidos, principalmente por evitar o desenvolvimento da síndrome do marcapasso. Essa síndrome ocorre quando o estímulo gerado por um eletrodo ventricular é conduzido de maneira retrógrada para o átrio. Com o passar do tempo, a dissincronia átrio-ventricular pode levar à redução do débito cardíaco e congestão venosa (pulmonar e periférica).

Os ressincronizadores cardíacos possuem eletrodos biventriculares. Estão indicados no tratamento de pacientes com insuficiência cardíaca de fração de ejeção reduzida (ICFER), refratários à terapia farmacológica otimizada e com QRS alargado. A terapia farmacológica da ICFER pode ser revisada neste tópico do Guia. Com o alargamento do QRS, ocorre uma dissociação significativa entre a contração ventricular direita e esquerda. A ideia do estímulo biventricular é corrigir essa dissociação. O benefício do uso de ressincronizadores foi demonstrado na redução da mortalidade, ganho de qualidade de vida e melhora da função ventricular [2].

O CDI representa uma das terapias mais eficazes na prevenção de morte súbita de causas cardíacas. O CDI identifica a arritmia e administra de maneira autônoma uma carga elétrica com o intuito de desfibrilar o paciente. Estão indicados após um episódio de morte súbita abortada ou em pacientes de alto risco de arritmias ventriculares fatais. As indicações de CDI e TRC na ICFER são revisadas a seguir.

Indicações da TRC e do CDI na insuficiência cardíaca de fração de ejeção reduzida

Pacientes com ICFER podem continuar com sintomas e disfunção sistólica, mesmo com terapia farmacológica otimizada. Os fatores mais comuns relacionados à persistência dos sintomas são [3]:

  • Insuficiência mitral moderada ou grave;
  • Reserva funcional miocárdica reduzida;
  • Dissincronia ventricular (secundária ao alargamento do QRS).

A estimulação biventricular da TRC tem o propósito de corrigir disfunções eletromecânicas na ICFER e melhorar o desempenho ventricular esquerdo. Quanto maior a duração do QRS, melhor é a resposta à TRC. Em relação ao tipo de dissincronia cardíaca, pacientes com bloqueio de ramo esquerdo (BRE) e duração do QRS > 150 ms são os que mais se beneficiam da TRC [4].

Poucos pacientes com bloqueio do ramo direito (BRD) foram incluídos nos estudos maiores, dificultando uma conclusão definitiva em relação aos efeitos da TRC nessa população. Em um estudo observacional, foi constatado pior desfecho em pacientes com BRD clássico [5].

Apesar da fibrilação atrial (FA) estar presente em 25% dos pacientes com IC, a maioria dos estudos que avaliaram o benefício da TRC excluiu pacientes com esta arritmia. Na FA o benefício da TRC é menor, principalmente pela dificuldade de controle da frequência cardíaca.

A morte súbita por arritmias ventriculares é uma das principais causas de óbito em pacientes com ICFER. Pacientes com ICFER e risco aumentado de morte súbita (cardiopatia isquêmica, fração de ejeção de ventrículo esquerdo < 35%) têm indicação de CDI para redução de mortalidade.

Muitos pacientes com indicação de CDI também se enquadram em critérios para TRC. Assim, a TRC pode ser indicada junto à implantação de CDI.

Tabela 1
Principais indicações de terapia de ressincronização cardíaca (TRC)
Principais indicações de terapia de ressincronização cardíaca (TRC)

A tabela 1 e tabela 2 resumem as principais recomendações de TRC e CDI, conforme a Diretriz Brasileira de Dispositivos Cardíacos Eletrônicos Implantáveis de 2023 [3].

Tabela 2
Principais indicações de cardiodesfibrilador implantável (CDI) na insuficiência cardíaca de fração de ejeção reduzida (ICFER)
Principais indicações de cardiodesfibrilador implantável (CDI) na insuficiência cardíaca de fração de ejeção reduzida (ICFER)

O estudo RAFT - uso de TRC e CDI na ICFER

O RAFT foi um estudo prospectivo, multicêntrico, duplo-cego e randomizado que avaliou o uso concomitante de TRC e CDI em pacientes com ICFER. Foram randomizados 1798 pacientes, com os seguintes critérios de inclusão [1]:

  • ICFER NYHA classe II ou III
  • Fração de ejeção de ventrículo esquerdo (FEVE) < 30% ou menos
  • QRS > 120 ms (ou QRS de marcapasso > 200 ms)
  • Ritmo sinusal
  • Ritmo de FA/Flutter com frequência controlada ou planejamento de ablação do nó AV.

Todos tinham indicação e receberam CDI. Os participantes foram randomizados para implante concomitante de TRC (CDI+TRC) ou CDI isoladamente. O desfecho primário avaliado foi uma combinação de morte por qualquer causa ou internação por IC descompensada. Os desfechos secundários foram morte por qualquer causa, morte por causas cardiovasculares, além de internação por IC. O tempo de acompanhamento mediano foi de 40 meses.

Os resultados foram publicados em 2010, e demonstraram que a TRC associada ao CDI reduziu as taxas de morte e hospitalização por IC na população com IC leve-moderada. Houve maior incidência de eventos adversos relacionados ao dispositivo no grupo CDI+TRC (hemotórax e pneumotórax após implante e infecção relacionada ao dispositivo).

Os dados anteriores a esse estudo já haviam demonstrado benefício de diminuição de taxa de internação e melhora da qualidade de vida, mas em cenários de doença mais avançada (classe funcional III e IV) [6]. O benefício de mortalidade no RAFT foi mais evidente nos pacientes com classe funcional NYHA classe II. Na análise de subgrupo, os pacientes com QRS alargado (> 150 ms) tiveram maior benefício da combinação CDI associado à TRC.

A partir desses achados, esses pacientes foram incluídos nas recomendações de diretrizes para indicação de TRC.

Os resultados do acompanhamento prolongado foram publicados no NEJM em janeiro de 2024 [7]. Foram incluídos 1050 pacientes de oito dos principais centros de recrutamento do estudo RAFT. A média de idade da amostra foi de 66 anos, sendo 84% homens. O acompanhamento mediano geral foi de 7,7 anos e de 13,9 anos nos pacientes que sobreviveram.

O desfecho primário avaliado foi de morte por qualquer causa. O desfecho aconteceu em 405 dos 530 (76,4%) pacientes do grupo CDI, e em 370 dos 520 (71,2%) pacientes do grupo CDI+TRC. O tempo até a morte foi maior no grupo CDI+TRC.

O desfecho secundário foi um composto de morte por qualquer causa, transplante cardíaco ou implante de dispositivo de assistência ventricular esquerda. Os resultados também favoreceram o grupo CDI+TRC. O desfecho composto foi encontrado em 392 dos 520 (75,4%) pacientes, em comparação a 412 dos 530 (77,7%) pacientes do grupo CDI.

O benefício em relação à mortalidade manteve-se durante o período de acompanhamento. O desfecho composto secundário também mostrou redução no tempo até o evento, apesar das curvas de evento começarem a sinalizar uma convergência após 12 anos de seguimento.

Esses achados ocorreram mesmo com a inclusão de pacientes com menos ou nenhum benefício com esse tipo de intervenção em outros estudos (BRD, FA ou intervalo QRS 120-149 ms). A diferença entre os grupos também se manteve a despeito da ocorrência de diversas outras variáveis clínicas que podem impactar na sobrevida, como avanços no tratamento farmacológico, piora da doença e até disfunção do dispositivo.

Algumas limitações do estudo envolvem a alta taxa de mortalidade da população selecionada (aproximadamente 80% da amostra), além de mudanças importantes na terapia farmacológica que ocorreram durante o acompanhamento (como os inibidores da neprilisina e os inibidores da SGLT2). Além disso, apenas oito centros foram incluídos, e não o total da amostra originalmente avaliada.

O estudo contribui para consolidar o papel da TRC no tratamento da ICFER, demonstrando incremento em sobrevida, qualidade de vida e capacidade funcional. Também abre espaço para indicar a intervenção de maneira precoce em paciente com alargamento de QRS e redução da fração de ejeção ventricular esquerda, visando promover maior tempo de sobrevida com qualidade de vida [8].