Estado Hiperglicêmico Hiperosmolar e Outras Complicações Agudas do Diabetes

Criado em: 15 de Abril de 2024 Autor: Ingrid Fröehner

Em fevereiro de 2024, foi publicada uma coorte realizada na Dinamarca sobre estado hiperglicêmico hiperosmolar. Aproveitamos para rever as complicações agudas do diabetes e apresentar os dados do estudo [1].

Como acontecem as principais complicações agudas do diabetes?

O estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH) e a cetoacidose diabética (CAD) são as principais emergências clínicas em pessoas com diabetes mellitus (DM). Apesar de CAD ser mais comum em diabetes tipo 1 e EHH em diabetes tipo 2, ambos podem ocorrer com qualquer tipo de diabetes.

Na CAD, existe deficiência absoluta de insulina. Em resposta, hormônios contrarreguladores, especialmente o glucagon, acionam outras fontes de energia, aumentando a gliconeogênese e a glicogenólise. No tecido adiposo, essa ação hormonal aumenta os ácidos graxos livres, que serão convertidos em corpos cetônicos como o acetoacetato e beta-hidroxibutirato. Essas substâncias acidificam o meio.

No EHH, há uma ação mínima de insulina que previne a acidose, mas que não é o bastante para controlar a hiperglicemia. Nessa situação, a concentração de ácidos graxos, cortisol e glucagon é menor em comparação à CAD. Além disso, o EHH causa desidratação grave devido à diurese osmótica e ausência de acidose. A figura 1 resume a fisiopatologia dessas condições.

Figura 1
Patogênese do estado hiperglicêmico hiperosmolar e da cetoacidose diabética
Patogênese do estado hiperglicêmico hiperosmolar e da cetoacidose diabética

Em pacientes com diabetes, alguns fatores agem como gatilhos para complicações agudas. Os principais são uso o inadequado de insulina e as infecções [2, 3]. Outros são:

  • Diabetes de início recente ou desconhecido;
  • Estressores metabólicos, como infarto agudo do miocárdio ou AVC;
  • Uso de medicações: corticoides, excesso de diuréticos, antipsicóticos atípicos e inibidores de checkpoint;
  • Baixa ingesta hídrica (fator de risco para EHH).

A cetoacidose diabética euglicêmica é uma complicação aguda mais rara do diabetes. Nessa situação, o paciente apresenta acidose e níveis glicêmicos normais ou levemente aumentados. Um fator de risco para a CAD euglicêmica é o uso de inibidores de SGLT2. Outros fatores predisponentes são gestação, ingestão calórica reduzida, abuso de álcool ou doença hepática crônica. Além das condições predisponentes, é preciso um gatilho para desenvolver a CAD euglicêmica. Os principais são cirurgias, dieta pobre em carboidratos, falha ou redução da aplicação de insulina, desenvolvimento de doenças agudas e LADA associado.

Como diagnosticar o EHH e a CAD e quais os principais diagnósticos diferenciais?

Pacientes com CAD e EHH apresentam sintomas de hiperglicemia, como poliúria, polidipsia, fraqueza e alteração do estado mental. A desidratação é percebida com mucosas secas e taquicardia. Tanto CAD como o EHH podem levar ao coma em casos graves [4].

Na CAD, a acidose causa outros sinais e sintomas, como náusea, vômitos e o padrão respiratório de Kussmaul [5]. A intensidade da dor abdominal se correlaciona com o grau da acidose e pode ser confundida com abdome agudo [6].

Na suspeita de uma complicação aguda do DM, deve-se solicitar gasometria arterial e análise de corpos cetônicos séricos (beta-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona). A dosagem de eletrólitos como sódio, potássio e cloro é necessária para firmar o diagnóstico, (a partir da determinação de ânion gap e osmolalidade) e guiar o tratamento.

Tabela 1
Critérios diagnósticos das complicações agudas do diabetes mellitus
Critérios diagnósticos das complicações agudas do diabetes mellitus

Os sintomas e alterações laboratoriais da CAD e do EHH podem ocorrer em conjunto, situação descrita como sobreposição CAD-EHH. Esse estado é caracterizado por bicarbonato abaixo de 18 mEq/L e osmolalidade sérica acima de 300 Osm/L. A tabela 1 organiza os critérios laboratoriais das complicações agudas do DM [7].

Tabela 2
Avaliação laboratorial de outras causas de acidose metabólica e coma
Avaliação laboratorial de outras causas de acidose metabólica e coma

Outras causas de acidose metabólica de ânion gap aumentado e alteração de consciência estão descritas na tabela 2 e são diagnósticos diferenciais das complicações agudas do DM.

O que o estudo de coorte dinamarquesa acrescentou no perfil do EHH?

Em 2023 foi publicado na Diabetes Care um estudo de coorte avaliando pacientes com EHH [1]. Para isso foi utilizado o banco de dados do sistema de saúde público dinamarquês entre 2016 e 2018.

Durante três anos de acompanhamento de 4,8 milhões de adultos na Dinamarca, 634 desenvolveram EHH. O estudo analisou perfis bioquímicos e dados clínicos desses pacientes. Os principais achados foram:

  • Um terço dos pacientes não tinha diagnóstico prévio de DM. Diabetes tipo 2 era um antecedente conhecido em 48% da amostra e 18% dos pacientes tinha diagnóstico de DM1;
  • Em relação ao quadro clínico, 62% dos pacientes apresentaram apenas EHH e 38% apresentaram sobreposição CAD-EHH;
  • A incidência de EHH foi mais alta entre os pacientes com DM tipo 1, sendo de 16,5 por 100.000 pessoas-ano nesses pacientes e 3,9 nos pacientes com DM tipo 2;
  • Entre os pacientes exclusivamente com EHH, a taxa de mortalidade intra-hospitalar foi de 17%. Um foco infeccioso foi identificado em 35% dos casos de EHH isolado;
  • Nos casos de sobreposição CAD-EHH, 39% dos pacientes tinham antecedente de diabetes. Acidose não CAD foi diagnosticada em 39% dos pacientes.

Em relação a outros estudos, a coorte dinamarquesa encontrou uma maior incidência de CAD-EHH (26% vs 20%) e maior incidência de diabetes tipo 1 com apresentação CAD-EHH (26% vs 12%). Estes dados detalham o perfil clínico de pacientes com EHH e auxiliam no manejo e identificação precoce desse grupo.

Bulário

Amiodarona

Criado em: 15 de Abril de 2024 Autor: Kaue Malpighi

A amiodarona tem vários efeitos antiarrítmicos e é amplamente utilizada em taquiarritmias supraventriculares e ventriculares dentro e fora do hospital. Neste tópico revisamos seu mecanismo de ação, como prescrever e como evitar seus efeitos adversos durante a administração.

Mecanismo de ação

Amiodarona é um antiarrítmico da classe III (classificação de Vaughan-Williams) com ação principal no bloqueio dos canais de potássio, prolongando a repolarização e o tempo de refratariedade das células cardíacas (figura 1). Também tem outras ações como bloqueio de canais de sódio, cálcio e efeito anti-adrenérgico [1, 2].

Figura 1
Potencial de ação e antiarrítmicos de classe III
Potencial de ação e antiarrítmicos de classe III

O mecanismo de ação difere entre a via intravenosa e a oral. A amiodarona intravenosa tem um tempo de ação mais rápido e atua predominantemente no nó atrioventricular, causando uma lentificação da sua condução e aumentando o período de refratariedade, tornando-a útil para controle de frequência agudamente. Por seu efeito antiadrenérgico significativo, apresenta risco de vasodilatação e hipotensão.

A amiodarona oral tem um tempo de ação prolongado e dependente de dose acumulada; seu pico de ação ocorre em 1 a 3 semanas sem uso de dose de ataque. Apresenta um efeito maior no miocárdio, prolongando seu potencial de ação e período de refratariedade, sendo mais usada no controle de ritmo a longo prazo e na prevenção da recorrência de arritmias [3].

É um medicamento lipofílico com alta distribuição tecidual e capacidade de acúmulo. Sua meia veia é prolongada, de aproximadamente 60 dias [2].

Como prescrever amiodarona na fibrilação atrial (FA)

A ampola de amiodarona tem uma concentração de 50 mg/mL e tem 3 mL, totalizando 150 mg por ampola. Deve ser diluída preferencialmente em soro glicosado 5% (SG 5%). Apresenta risco de flebite quando infundida em acesso periférico e em concentrações maiores que 2 mg/mL.

O esquema de dosagem de amiodarona é semelhante para controle de ritmo ou de frequência. O esquema mais comumente utilizado é o de 150 mg em dose de ataque, sendo infundido em 30 a 60 minutos, seguido de 900 mg em 24 horas em bomba de infusão contínua (1 mg/min nas primeiras 6 horas e 0,5 mg/min por 18 horas). É comum a diluição de 900 mg (6 ampolas) em 250 mL de SG 5% infundida em cateter venoso central por 24 horas (aproximadamente 11 mL/h por 24 horas) sem a necessidade de mudança nas primeiras 6 horas. Para infusões contínuas e prolongadas, recomenda-se infusão em cateter venoso central.

A dose de ataque deve ser feita em 30 a 60 minutos para reduzir o risco de hipotensão [4, 5]. Algumas referências recomendam o uso de doses de ataque de até 300 mg. Em pacientes críticos, com risco de hipotensão significativa e que a FA não é a causa da instabilidade, pode-se considerar a não realização da dose de ataque.

A eficácia da amiodarona para controle de ritmo é inconsistente na literatura. A probabilidade de sucesso é maior em pacientes com episódios de FA de curta duração e átrio esquerdo de menor tamanho (veja mais sobre anticoagulação antes do controle de ritmo na revisão sobre Fibrilação Atrial) [5, 6].

Como prescrever amiodarona nas arritmias ventriculares e PCR

Na parada cardiorrespiratória, o uso da amiodarona é recomendado nos ritmos chocáveis entre o segundo e o terceiro choques. Neste contexto ela é feita na dose de 300 mg em bolus intravenoso ou intraósseo. Pode-se repetir uma dose de 150 mg em casos refratários.

Em pacientes com taquicardia ventriculares e instáveis, o tratamento de escolha é a cardioversão elétrica. Em pacientes estáveis, pode-se utilizar a cardioversão química com drogas intravenosas como a procainamida e o sotalol, sendo a amiodarona uma medicação de segunda linha. Quando utilizada, a dose é a mesma discutida no contexto de fibrilação atrial [7, 8]. Neste caso, algumas fontes recomendam infusão de ataque em 10 minutos, devendo-se tomar cuidado com hipotensão.

Em pacientes com tempestade elétrica ou taquicardia ventricular incessante, a medicação antiarrítmica de escolha é a amiodarona, preferencialmente em conjunto com beta-bloqueadores [9, 10].

Outros cuidados e transição de amiodarona intravenosa para oral

O principal evento adverso associado ao uso da amiodarona intravenosa é a hipotensão. Sua ocorrência está associada a infusões rápidas e a solventes como o polissorbato 80 (presente nas ampolas no Brasil). Infusões das doses de ataque de modo mais lento, em 30 a 60 minutos, reduzem esse risco.

Flebite pode ser evitada com concentrações mais diluídas (< 2 mg/mL) e infusões prolongadas. Outros eventos adversos incluem bradicardia, náusea, vômitos e alterações de enzimas hepáticas. Raramente, o uso da amiodarona pode gerar torsades de pointes, sendo mais comum em pacientes com infarto ou alterações eletrolíticas associadas [9, 10].

A amiodarona tem alto risco de interação medicamentosa por inibir o metabolismo de algumas drogas. As principais interações são:

  • Varfarina - potencializa seu efeito, com necessidade de redução de sua dose e acompanhamentos frequentes do tempo de protrombina [11].
  • Sinvastatina - recomenda-se uma dose máxima de 20 mg quando utilizada em conjunto com amiodarona pelo aumento no risco de miopatia [12, 13].
  • Digoxina - aumenta o risco de toxicidade com o uso de amiodarona.

Em pacientes estáveis, considera-se a transição para amiodarona via oral. Quando uma dose acumulada de 10 gramas já foi atingida, pode-se trocar para a via oral em dose de manutenção 100 a 400 mg/dia (100 a 200 mg/dia em pacientes com fibrilação atrial e 200 a 400 mg/dia em pacientes com taquicardias ventriculares). Em pacientes idosos, com disfunção hepática ou com baixo peso (menos que 45 kg) pode-se considerar a dose de 100 mg/dia [14].

Se a dose acumulada de 10 gramas ainda não foi atingida, um esquema proposto é [14]:

  • 200 mg de 8 em 8 horas por uma semana
  • 200 mg de 12 em 12 horas por uma semana
  • Manter dose de manutenção após atingida a dose acumulada de 10 gramas.

Cigarro Eletrônico e Cessação do Tabagismo

Criado em: 15 de Abril de 2024 Autor: João Mendes Vasconcelos

Cigarros eletrônicos ou vapes são produtos que vaporizam nicotina e têm crescido mundialmente. Embora existam muitas preocupações de saúde pública e dúvidas sobre riscos individuais a longo prazo, os cigarros eletrônicos são estudados como meio de cessação de tabagismo. Um estudo publicado no New England Journal of Medicine em fevereiro de 2024 avaliou essa questão [1]. Esse tópico aborda o tema e os novos estudos.

Como funciona um cigarro eletrônico e qual a diferença para um cigarro convencional?

Cigarro eletrônico ou vape é um dispositivo que usa bateria para aquecer um líquido contendo nicotina. O líquido aquecido é aerossolizado e inalado pelo usuário. O vapor gerado simula a fumaça do tabaco, porém não ocorre combustão durante o processo — diferente do cigarro convencional.

Existem quatro gerações de cigarros eletrônicos [2]. Inicialmente se assemelhavam a cigarros convencionais, porém se modificaram com o tempo. Os pods são cigarros eletrônicos de quarta geração de aparência discreta e alguns se assemelham a um pen drive. Esses dispositivos têm fácil aceitação entre adolescentes e podem passar despercebidos em vários ambientes, incluindo escolas e a própria residência.

Figura 1
Gerações de cigarros eletrônicos
Gerações de cigarros eletrônicos

O cartucho de cigarro eletrônico contém três principais componentes no líquido que é vaporizado:

  • Nicotina — em concentrações variadas, indo de produtos livres de substâncias até concentrações de 36 mg/ml ou até maiores.
  • Propilenoglicol ou glicerol — são umectantes, sendo os principais componentes do líquido. Etilenoglicol também foi encontrado na composição de alguns líquidos vaporizados [3].
  • Aromatizante — existem mais de 7000 aromas possíveis [4].

Alguns componentes do líquido do cartucho tem potencial carcinogênico [5]. Metais e outras substâncias químicas tóxicas já foram detectados no líquido [6, 7]. Os cigarros eletrônicos também podem ser usados para inalar tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD).

No Brasil, cigarros eletrônicos são proibidos pela ANVISA desde 2009.

Quais os riscos de cigarros eletrônicos para o usuário?

Os riscos possíveis para a pessoa que utiliza cigarro eletrônico podem ser divididos em três categorias: inalação de nicotina, inalação do vapor e riscos do dispositivo.

O consenso atual é que a maioria da morbidade e mortalidade do tabagismo é uma consequência de outras substâncias químicas diferentes da nicotina inaladas durante o fumo [8]. Contudo, a nicotina tem potencial viciante e mantém no usuário o hábito de fumar. Assim como no cigarro convencional, o uso de cigarro eletrônico aumenta a concentração de nicotina no sangue e eleva a frequência cardíaca. A quantidade de nicotina entregue com cigarros eletrônicos depende do padrão de uso, dispositivo e líquido utilizado [9]. Usuários mais experientes tendem a apresentar concentrações de nicotina próxima a de usuários de cigarro convencional. Em relação aos riscos cardiovasculares da nicotina em si, dados da terapia de reposição de nicotina apontam não haver aumento significativo na incidência de eventos coronarianos ou do risco de câncer quando a nicotina é utilizada para cessação do tabagismo [10, 11].

Os cigarros eletrônicos não expõem o usuário a alcatrão, monóxido de carbono e outros gases envolvidos em desfechos negativos, porém existem várias outras substâncias potencialmente tóxicas no vapor inalado. Além disso, o usuário pode recarregar o dispositivo com líquidos adulterados e sem controle de produção, conferindo um risco adicional difícil de mensurar. Em 2019, vários casos de lesão pulmonar grave associados a cigarro eletrônico (EVALI) foram relatados nos EUA, possivelmente relacionados à presença de acetato de vitamina E. Saiba mais no episódio 22 - cigarros eletrônicos e a lesão pulmonar associada ao seu uso.

Sabe-se pouco sobre os riscos a longo prazo de cigarros eletrônicos. Ainda não há tempo suficiente para analisar a questão e a variedade de líquidos e dispositivos dificulta o estudo padronizado. Não existem dados sobre desfechos oncológicos, cardiovasculares e respiratórios a longo prazo. Alguns estudos apontam a presença de substâncias carcinogênicas no vapor, elevação de marcadores substitutos de risco cardiovascular e maior prevalência de sintomas respiratórios [12, 13]. Dados epidemiológicos recentes sugerem que os riscos podem ser comparáveis ao de cigarros convencionais, suplantando as estimativas baseadas em estudos com biomarcadores [14] .

Outro problema específico do cigarro eletrônico é o risco associado ao mau funcionamento do dispositivo. Existem vários relatos de queimaduras, lesões químicas e explosões [15].

Quais as preocupações de saúde pública?

As intervenções que abordam comportamentos de risco podem ter três objetivos: prevenção, cessação e redução de danos. A influência do cigarro eletrônico nesses três componentes deve ser considerada sob uma perspectiva populacional.

As estratégias de redução de danos, quando aplicadas ao uso de substâncias, são fundamentadas na premissa de que a eliminação total de um comportamento de risco na população não é possível. As intervenções de redução de danos não visam abstinência, mas sim proporcionar mais segurança para os usuários, mesmo que continuem usando substâncias. Alguns exemplos são fornecer seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis e distribuição de naloxona em locais com alta prevalência de uso de opioides. As medidas de redução de danos não excluem as intervenções de cessação e prevenção, mas atuam de maneira complementar.

Nesse sentido, alguns pesquisadores ponderam que o cigarro eletrônico teria o potencial de funcionar como uma estratégia de redução de danos em relação ao cigarro convencional. Essa ideia se baseia na estimativa de que os riscos do cigarro eletrônico seriam menores que os do cigarro convencional. Como discutido na seção “Quais os riscos para o usuário?”, há incerteza nessa hipótese, já que boa parte do risco a longo prazo ainda não é conhecido e dados epidemiológicos atuais sugerem riscos similares ao do cigarro comum [14].

Um dos problemas dos cigarros eletrônicos é o uso por pessoas que não eram fumantes, especialmente os jovens [16]. Nessa população, o argumento da redução de danos não se aplica, já que ela não fumava anteriormente. Aqui o cigarro eletrônico atua revertendo os benefícios conseguidos nas últimas décadas com as intervenções de prevenção do tabagismo. Dados dos últimos anos mostram um aumento acelerado da prevalência de uso de cigarros eletrônicos entre jovens. Isso vai no sentido contrário da tendência de redução do tabagismo.

A exposição à nicotina em jovens preocupa pelo potencial de vício da substância. Alguns dados apontam que o cigarro eletrônico pode preceder o uso de cigarro convencional na população mais jovem, funcionando como “porta de entrada” [17]. Isso pode ocorrer em parte por um efeito do cigarro eletrônico de normalizar novamente o comportamento do tabagismo. Os fabricantes de cigarros eletrônicos utilizam saborizantes e aromas com apelos aos jovens, uma estratégia que já foi utilizada pela indústria do tabaco [18, 19].

Outras preocupações incluem intoxicação por nicotina envolvendo a ingestão de líquido com alta concentração da substância e as consequências do vape passivo.

O que as diretrizes e estudos dizem sobre cigarros eletrônicos na cessação do tabagismo?

O novo estudo publicado no New England Journal of Medicine avaliou 1246 pacientes tabagistas na Suíça com desejo de cessar o hábito. Os pacientes do grupo intervenção receberam kits de cigarro eletrônico em sabores e concentrações de nicotina variados. O grupo controle recebia um voucher de 50 francos suíços, que poderia ser utilizado como os participantes quisessem, incluindo para comprar terapia de reposição de nicotina. Ambos os grupos passavam por aconselhamento para cessação do tabagismo, envolvendo orientações de um enfermeiro sobre terapias de cessação de tabagismo fornecidas em uma consulta presencial e em cinco chamadas telefônicas. Pacientes que usaram terapia de reposição de nicotina, outra terapia para cessação de tabagismo ou cigarro eletrônico nos últimos três meses antes do início do estudo foram excluídas.

O desfecho primário foi abstinência contínua de tabagismo em seis meses, verificada de maneira bioquímica. O grupo intervenção teve maior taxa de pacientes abstinentes de tabagismo do que o grupo controle (28,9% vs 16,3%; risco relativo 1,77 IC 95% 1,43 a 2,20). Contudo, menos pacientes no grupo intervenção se mantiveram abstinentes de nicotina, já que muitos se mantiveram utilizando cigarros eletrônicos (abstinência de nicotina no grupo intervenção 20% vs controle 34%). Dos pacientes do grupo controle, 63% utilizaram terapia de reposição de nicotina. Não houve diferença de eventos adversos graves entres os grupos, apesar de o grupo cigarro eletrônico ter mais eventos adversos leves (especialmente relacionado às mucosas).

Outro estudo recente publicado no JAMA encontrou que os cigarros eletrônicos foram não inferiores a vareniclina para cessação de tabagismo [20]. Como em outros estudos, boa parte dos pacientes continuaram usando cigarros eletrônicos ao final do estudo (63%). Uma revisão sistemática recente da Cochrane encontrou superioridade dos cigarros eletrônicos em relação à terapia de reposição de nicotina [21].

Contudo, duas desvantagens dificultam a adoção dos cigarros eletrônicos como medidas de cessação e redução de danos: o desconhecimento sobre os malefícios a longo prazo e os efeitos sobre os jovens, revertendo os avanços conseguidos com a prevenção de tabagismo. Apesar de os novos estudos acrescentarem informação ao debate, sem esses outros dados as ressalvas contra os cigarros eletrônicos devem continuar.

Até o momento, as sociedades médicas não recomendam o uso de cigarros eletrônicos para cessação ou redução de danos do tabagismo [22].