Hipoglicemia na Diabetes: Diretriz de Manejo Ambulatorial

Criado em: 20 de Maio de 2024 Autor: Lucca Cirillo

A hipoglicemia é um dos principais efeitos adversos no tratamento medicamentoso da diabetes. Em fevereiro de 2024, o Journal of the American Medical Association publicou uma sinopse da diretriz de 2023 da Endocrine Society sobre o manejo de pacientes com diabetes e alto risco de hipoglicemia [1, 2]. Este tópico aborda as principais recomendações desses documentos.

Como avaliar o risco de hipoglicemia no paciente ambulatorial

A hipoglicemia é um evento comum em pacientes com diabetes. Impacta na qualidade de vida, dificulta a aderência e aumenta custos em saúde e número de visitas ao pronto-atendimento. É mais comum em pessoas com menor renda e escolaridade e naqueles com insegurança alimentar. 

Um classificação dos eventos hipoglicêmicos foi proposta pela American Diabetes Association. Inicialmente foi desenvolvida para indivíduos com diabetes tipo 1 (DM 1), mas é comumente usada na prática para outros grupos de pacientes. Os eventos são classificados segundo a concentração sérica e manifestações clínicas [3]:

  • Nível 1 - Glicose < 70 mg/dL e  ≥ 54 mg/dL. Esse nível de hipoglicemia pode ser assintomático, mas deve alertar o paciente para prevenir progressão da queda dos níveis de glicose; 
  • Nível 2 - Glicose < 54 mg/dL. Associado ao aumento do risco de sintomas neuroglicopênicos (alteração comportamental, visual e rebaixamento do nível de consciência) e mortalidade; 
  • Nível 3 - Alteração do estado mental ou físico em consequência da hipoglicemia que necessite da assistência de terceiros, independente dos níveis de glicose.

Pessoas com DM 1 são consideradas de alto risco para hipoglicemia e podem apresentar episódios sintomáticos até duas vezes na semana. No diabetes tipo 2 (DM 2), o risco é aumentado nas seguintes situações:

  • Uso de insulina ou secretagogos (como sulfonilureias)
  • Disfunção renal e/ou hepática
  • Longo tempo de doença
  • Idosos
  • Déficits cognitivos ou intelectuais
  • Episódios pouco sintomáticos de hipoglicemia
  • Uso de álcool e medicamentos predisponentes (ver caso clínico 17)

Orientando o tratamento de hipoglicemia ambulatorial

Todo paciente sob risco de hipoglicemia deve ser orientado a manejar um episódio de hipoglicemia ambulatorialmente. As condutas podem ser divididas pelo nível do evento:

  • Hipoglicemia nível 1: serve de alerta para tendência à queda e necessidade de ingesta de carboidratos para prevenir a piora da hipoglicemia. É recomendado evitar tarefas críticas, como dirigir. Deve-se revisar a aplicação de insulina ou medicamentos, além de medir a glicemia na próxima hora.
  • Hipoglicemia nível 2: o paciente deve corrigir a hipoglicemia com a ingesta oral de carboidratos. A orientação é administrar 15 gramas de carboidratos simples (como uma colher de sopa de açúcar, três sachês de mel ou 150 ml de refrigerante comum). Após 15 minutos a glicemia deve ser aferida e, caso persista a hipoglicemia, as medidas podem ser repetidas. 
  • Hipoglicemia nível 3: ameaçador à vida e requer tratamento emergencial. O auxílio de um terceiro é necessário para administrar carboidratos ou glucagon. A administração oral de carboidratos não deve ser realizada em pacientes com diminuição do nível de consciência, pelo risco de broncoaspiração. No extra-hospitalar não há possibilidade de acesso venoso. Nesse cenário, o glucagon (disponível pelas vias nasal, intramuscular ou subcutânea) é a melhor opção até a obtenção de uma via endovenosa para administração de glicose. A diretriz traz a preferência do uso de preparações de glucagon que não necessitem de reconstituição (como as apresentações farmacológicas em pó), facilitando sua aplicação no ambiente ambulatorial [2]

Dispositivos de monitorização de glicose ambulatoriais

O tratamento ambulatorial do DM evoluiu com o desenvolvimento de dispositivos voltados para a monitorização dos níveis de glicose. Os três dispositivos mais relevantes são: (1) monitores de glicose contínuos em tempo real; (2) monitores de glicose contínuos de aferição intermitente; e (3) glicosímetros manuais. Ver figura 1 e figura 2.

Figura 1
Monitor de glicose contínuo
Monitor de glicose contínuo

Os monitores de glicose contínuos em tempo real são os dispositivos mais recentes, aferindo a glicose intersticial a cada um a cinco minutos. As informações são enviadas automaticamente para um dispositivo (receptor, bomba de insulina ou smartphone), provendo dados sobre os níveis de glicose em tempo real para o usuário.

Figura 2
Glicosímetro manual
Glicosímetro manual

Monitores de glicose contínuos de aferição intermitente funcionam de maneira semelhante aos de tempo real, porém dependem que o usuário faça ativamente a leitura manual do sensor com um dispositivo. Gerações mais recentes fornecem um alerta de predição de hipoglicemia. 

Os glicosímetros manuais são os tradicionais e amplamente disponíveis aparelhos de leitura de glicemia capilar, onde o paciente realiza o automonitoramento dos níveis de glicose. A frequência e o horário das aferições são orientadas conforme o tipo de tratamento, intensidade do controle glicêmico desejado e risco de desenvolvimento de hipoglicemia. 

Recomendações para diminuir o risco de hipoglicemia

Os monitores de glicose contínuos em tempo real são preferíveis em comparação ao automonitoramento dos níveis de glicose. Esta recomendação é tanto para pacientes com DM 1 (recomendação forte, baixa qualidade de evidência), como para pacientes com DM 2 utilizando terapia com insulina ou sulfonilureias e alto risco de hipoglicemia (recomendação condicional, baixa qualidade de evidência). 

Quando comparada com o automonitoramento, a monitorização contínua esteve associada à menor incidência de hipoglicemia [4]. Também esteve associada a menor tempo de glicose abaixo de 70 mg/dL nas aferições, bem como a aumento do percentual do tempo na meta de glicose de 70 a 180 mg/dL [5].

As principais limitações para o uso do monitoramento contínuo envolvem custo, necessidade de treinamento adequado do profissional prescritor, exposição do paciente à ansiedade por sobrecarga de dados/alerta, reações cutâneas pela presença do sensor e falhas tecnológicas. 

Em caso de aferições incongruentes pelo dispositivo contínuo (por exemplo, glicose muito baixa em paciente assintomático), deve ser feita verificação manual com a glicemia capilar. 

O risco de hipoglicemia também influencia na escolha da insulina. Pacientes com risco aumentado de hipoglicemia se beneficiam dos análogos de insulina de ação lenta/ultra-lenta (detemir, glargina e degludeca) em detrimento da NPH (para ver mais sobre insulinização basal, veja o tópico sobre insulina semanal. A mesma recomendação é válida para análogos de insulina ultra-rápida (aspart, lispro), em detrimento de insulinas de ação rápida (regular).  

Infecções Oportunistas Associadas a Corticoides Sistêmicos

Criado em: 20 de Maio de 2024 Autor: Marcela Belleza

Corticoides estão relacionados a vários eventos adversos, entre eles as infecções. Em abril de 2024, a revista Clinical Infectious Diseases publicou um artigo sobre o risco de infecções oportunistas associadas ao uso crônico de corticoides. Este tópico traz os principais pontos da publicação [1].

Por que os corticoides aumentam o risco de infecções?

Os corticoides agem em muitas vias do sistema imune. Isso justifica os benefícios em várias situações e explica o aumento do risco de infecções, especialmente com uso crônico [1]. São usados em intercorrências agudas, como na exacerbação de doença pulmonar obstrutiva crônica e asma e choque séptico refratário. Também tem aplicações em condições crônicas como doenças autoimunes, transplante de órgãos sólidos e adjuvantes em terapias oncológicas. 

Tabela 1
Equivalência de corticoides
Equivalência de corticoides

A dose de corticoide está relacionada ao aumento do risco de infecções. A equivalência de corticoides (tabela 1) reflete a afinidade do medicamento ao receptor e à capacidade anti-inflamatória [1]. Doses baixas a moderadas são definidas como menores que 1 mg/kg/dia de prednisona (pediatria) ou inferiores a 40 mg/dia de prednisona (adultos). Doses altas tem associação mais forte com eventos adversos.

Alguns estudos encontraram aumento da incidência de infecções mesmo com doses menores, como maior risco de herpes zoster em pacientes com artrite reumatoide em uso de prednisona 7,5 mg/dia [2]. O risco de reativação de tuberculose é sete vezes maior em indivíduos em uso de 15 mg/dia de prednisona [3].

A associação de corticoides a outros imunossupressores ou inibidores de checkpoint é comum e também aumenta o risco de infecções. A duração do uso de corticoides e a doença de base também influenciam o risco de infecções. 

As três principais estratégias que reduzem o risco de infecções associadas a corticoides são:

  • Rastreio de infecções oportunistas
  • Profilaxia antimicrobiana
  • Cuidados gerais, como vacinação e redução de dose e tempo de uso de corticoides sistêmicos quando possível.

Rastreio de infecções e profilaxia antimicrobiana

Pacientes que usarão dose igual ou superior a 15 mg/dia de prednisona (ou equivalente) por 28 dias ou mais devem ser rastreados para tuberculose latente, pelo risco de reativação [4, 5]. O rastreio e tratamento da tuberculose latente foram revisados no tópico tuberculose latente

A profilaxia de pneumocistose (PCP) é indicada a depender da dose de corticoide e da doença subjacente. Em pacientes com doenças reumatológicas, a profilaxia deve ser considerada quando doses maiores 15 a 30 mg/dia de prednisona (ou equivalente) são usadas por pelo menos duas a quatro semanas [4]. O benefício parece surgir a partir dessa dose, mas cada doença reumatológica e imunossupressores associados conferem um risco diferente. Linfopenia persistente, idade avançada e doença pulmonar prévia também aumentam o risco de PCP.

Granulomatose com poliangeíte (GPA, a antiga granulomatose de Wegener) e miopatias autoimunes inflamatórias parecem ter maior risco. A diretriz americana sugere a profilaxia de PCP para pacientes com GPA em uso de rituximabe ou ciclofosfamida [6]. A diretriz brasileira de miopatias autoimunes considera a profilaxia especialmente em pacientes com fatores de risco (acometimento do interstício pulmonar, uso de outros imunossupressores e presença de anticorpo anti-MDA-5) [7].

Quando existe outra situação de imunocomprometimento (como nas doenças onco-hematológicas ou uso de outro imunossupressor), a profilaxia de pneumocistose é considerada para pacientes em uso de 20 mg/dia de prednisona ou equivalente por pelo menos quatro semanas [8,9]. Como nas doenças reumatológicas, cada condição tem um risco específico, mas duas situações de maior risco são a leucemia linfocítica aguda e transplantes (órgão sólido e células-tronco hematopoiéticas, especialmente alogênico) [10].

A recomendação é a prescrição de sulfametoxazol/trimetoprima em doses diárias (200/40 mg) ou três vezes por semana (400/80 mg) por até um mês após a suspensão do corticoide [11]. 

A estrongiloidíase disseminada pode ocorrer após uso de corticoides sistêmicos. Não há um consenso sobre a dose e o tempo de uso de corticoide que indique o tratamento empírico ou pesquisa da infecção. No Brasil, onde a estrongiloidíase é endêmica, a terapia empírica é recomendada antes do uso de pulso de corticoide [1, 7, 12]. Um esquema possível é de ivermectina 200 mcg/kg por dois dias, devendo ser repetido após duas semanas [13].

Outros cuidados com uso de corticoides sistêmicos

Pacientes em terapia imunossupressora devem ser vacinados para herpes zoster, idealmente antes do início do imunossupressor [1]. A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) considera a dose imunossupressora quando igual ou superior a 2 mg de prednisona/kg/dia ou 20 mg de prednisona/dia por mais de duas semanas.

O esquema vacinal deve ser ajustado em pacientes em uso crônico de corticoide. A SBIm recomenda que não recebam vacinas de microrganismos atenuados quando em uso de doses imunossupresoras. As vacinas de microorganismos atenuados são: BCG, rotavírus, pólio oral (VOP), febre amarela, tríplice e tetraviral (sarampo, caxumba, rubéola e varicela) e dengue. A vacinação pode ser feita após um mês da suspensão do medicamento conforme o calendário de vacinação da SBIm.

Outra medida para reduzir o risco de infecção associada aos corticoides é utilizar a menor dose efetiva e preferir as formulações tópicas ou inalatórias. Algumas evidências mostram que o uso de corticoides em dias alternados pode reduzir as chances de infecções [14].

Gamopatia Monoclonal de Significado Indeterminado (MGUS)

Criado em: 20 de Maio de 2024 Autor: Raphael Coelho

A gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS) é uma condição pré-maligna com risco de evoluir para neoplasia hematológica, principalmente mieloma múltiplo. A maioria dos pacientes com MGUS não progredirá para quadros neoplásicos, dificultando a escolha de quem se beneficiaria de investigação adicional. Em abril de 2024, foi publicado no Annals of Internal Medicine uma calculadora de risco para auxiliar na indicação de investigação medular nesses pacientes [1]. Este tópico revisa MGUS e traz os resultados do estudo.

O que é gamopatia monoclonal?

Plasmócitos são as células do sistema imune que produzem anticorpos. Os anticorpos são chamados de imunoglobulinas ou gamaglobulinas. A estrutura de uma imunoglobulina é formada por combinações de dois tipos de cadeias, uma leve e uma pesada (figura 1): 

  • Cadeias pesadas: cinco tipos diferentes e definem a classe da imunoglobulina (IgA, IgG, IgM, IgD e IgE).
  • Cadeias leves: dois tipos diferentes, kappa (𝜅) e lambda (𝜆). 
Figura 1
Estrutura dos anticorpos
Estrutura dos anticorpos

Por exemplo, um anticorpo IgG em que a cadeia leve é kappa é chamado de IgG kappa.

Cada plasmócito produz apenas um tipo de imunoglobulina específica contra um antígeno. Quando necessário, o sistema imune copia o plasmócito em clones idênticos que irão juntos produzir em maior quantidade a imunoglobulina contra aquele antígeno.

Em situações de estimulação imunológica, como em uma infecção, há uma resposta a diversos antígenos. Nesse caso, são produzidas diversas imunoglobulinas por diferentes plasmócitos clonados. Essas imunoglobulinas são percebidas na eletroforese de proteínas como um pico de base larga, chamado de pico policlonal, já que vários clones distintos de plasmócitos estão envolvidos (veja mais em "como identificar uma gamopatia monoclonal?"). 

Em outras situações, um único clone de plasmócitos produz em excesso um único tipo de imunoglobulina, chamado de proteína monoclonal ou proteína M. Essa situação é chamada gamopatia monoclonal e ocasiona um pico de base estreita na eletroforese, chamado de pico monoclonal. O plasmócito clonado também pode produzir apenas cadeias leves livres (kappa ou lambda), sem cadeia pesada associada.

A gamopatia monoclonal pode ocorrer em neoplasias hematológicas, em doenças causadas por toxicidade da proteína M ou pode ter significado clínico indeterminado. A principal doença hematológica associada é o mieloma múltiplo (MM). Outras doenças associadas são macroglobulinemia de Waldenström, amiloidose primária e síndrome de POEMS.

Como identificar uma gamopatia monoclonal?

Os três principais exames de investigação de gamopatias monoclonais são a eletroforese de proteínas, a imunofixação sérica e a pesquisa de cadeias leves.

Figura 2
Padrões de eletroforese de proteínas
Padrões de eletroforese de proteínas

A eletroforese de proteínas (figura 2) quantifica as proteínas e as representa em um gráfico, conforme o peso (mais pesadas à esquerda e mais leves à direita) e a concentração sérica (quanto maior a concentração, maior o "pico"). A albumina é a proteína com maior concentração e tem alto peso, formando um pico à esquerda do gráfico. As outras proteínas são agrupadas em quatro regiões com relevo menor: alfa-1, alfa-2, beta e gama. As imunoglobulinas se localizam na região gama, daí o nome de gamaglobulinas.

Quando há aumento da concentração de imunoglobulinas produzidas por um único clone, pode surgir um pico agudo e de base estreita na região gama chamado de pico monoclonal. A imunoglobulina responsável por esse pico é chamada de proteína M.

A imunofixação identifica a classe de cadeia pesada e de cadeia leve monoclonal (exemplo: IgG kappa). É mais sensível que a eletroforese e detecta quantidades muito baixas de proteína monoclonal. A combinação de eletroforese de proteínas e imunofixação aumenta a sensibilidade de detecção da proteína M de 82% para 93%, em comparação com a eletroforese isoladamente [2].

Eletroforese de proteínas e a imunofixação séricas podem não detectar algumas proteínas monoclonais, especialmente cadeias leves livres em pequena quantidade, difíceis de detectar no soro. Estes exames também podem ser realizados na urina para detecção de cadeias leves. A pesquisa de cadeias leves livres sérica é um exame que consegue identificar as quantidades de kappa e lambda livres no soro mesmo em pequenas quantidades. A relação entre as cadeias leves livres (por exemplo, kappa/lamba) também é usado no diagnóstico de gamopatias monoclonais [2, 3, 4].

O que fazer diante de uma gamopatia monoclonal? O que é MGUS?

Após encontrar uma proteína monoclonal, o próximo passo é avaliar se existe uma doença associada ou não. Sinais de mieloma múltiplo (disfunção renal, anemia e hipercalcemia) devem ser investigados. Neoplasias linfoproliferativas também cursam com a presença da proteína monoclonal e devem ser investigadas conforme o quadro clínico do paciente. A tabela 1 traz os exames iniciais para investigação após identificação de gamopatia monoclonal [2, 5].

Tabela 1
Testes iniciais para investigação após identificação de gamopatia monoclonal (pico monoclonal ou proteína M) em eletroforese de proteínas
Testes iniciais para investigação após identificação de gamopatia monoclonal (pico monoclonal ou proteína M) em eletroforese de proteínas

Há associação da proteína monoclonal com lesões de órgãos, mesmo na ausência de uma neoplasia hematológica. O termo gamopatia monoclonal com significado clínico é utilizado para esses casos. O tratamento hematológico pode ser indicado para reverter a alteração orgânica. Exemplos de doenças associadas são a amiloidose primária, crioglobulinemias, glomerulonefrites e polineuropatias.

Tabela 2
Critérios diagnósticos para MGUS, smoldering mieloma e mieloma múltiplo
Critérios diagnósticos para MGUS, smoldering mieloma e mieloma múltiplo

Gamopatia monoclonal de significado indeterminado (utiliza-se comumente a sigla MGUS, do inglês monoclonal gammopathy of undetermined significance) é a situação em que ocorre a produção de uma proteína M sem que haja significado clínico. MGUS está presente em aproximadamente 3% da população com mais de 50 anos. É considerado um estágio pré-maligno de cânceres hematológicos, principalmente o mieloma múltiplo. A maioria dos pacientes não progride para um câncer. Há um estágio intermediário entre o MGUS e o mieloma múltiplo chamado de smoldering mieloma (mieloma assintomático). O risco de progressão para mieloma múltiplo é em torno de 1% ao ano. A probabilidade em 10 anos de progressão é em torno de 12% e em 25 anos de 30%. A tabela 2 traz os critérios diagnósticos de MGUS, smoldering mieloma e mieloma múltiplo [6].

O grupo IStopMM está investigando o rastreio de mieloma múltiplo na população da Islândia e ainda não publicou seus resultados [7].

Como decidir se o paciente com MGUS deve fazer uma biópsia de medula?

Caso não seja identificado neoplasia hematológica, o próximo passo é diferenciar MGUS de smoldering mieloma. Pacientes com smoldering mieloma tem ≥ 10% de plasmócitos na medula óssea, sendo essa a principal diferença em relação aos pacientes com MGUS. Contudo, nem todos os pacientes com gamopatia monoclonal necessitam de investigação medular. A estratificação de risco da Mayo Clinic é recomendada em diretrizes para indicar a necessidade de investigação de medula. (tabela 3). Em pacientes de baixo risco não há indicação de investigação medular, mas é necessário monitorar o paciente [3].

Tabela 3
Modelo de estratificação de risco do MGUS pela Mayo Clinic
Modelo de estratificação de risco do MGUS pela Mayo Clinic

Os preditores mais importantes na avaliação do risco de progressão para mieloma múltiplo são a concentração da proteína monoclonal, o tipo de proteína monoclonal, a relação entre as cadeias leves livres kappa/lambda e o número de plasmócitos clonais na biópsia de medula. Os três tipos de MGUS, conforme a proteína monoclonal produzida, estão na tabela 4.

Tabela 4
Tipos de MGUS e progressão clínica
Tipos de MGUS e progressão clínica

Mesmo no grupo de alto risco pela Mayo Clinic, 73% dos pacientes não progrediram para neoplasia após 20 anos de acompanhamento, considerando que uma parte faleceu durante esse período. Por isso, são necessárias novas estratégias para definir quem são os pacientes com MGUS que devem ser investigados.

O grupo IStopMM desenvolveu uma calculadora que auxilia na decisão de realizar investigação medular em pacientes com suposto MGUS [1]. Ao inserir o tipo de MGUS, a concentração de proteína M sérica, os valores de IgG, IgA, IgM e a relação kappa/lambda, a calculadora estima a chance de encontrar 10% ou mais de plasmócitos na medula óssea. 

O trabalho que avaliou a calculadora incluiu mais de 1000 pacientes com suposto MGUS com mediana de idade de 68 anos. Os pacientes participavam de um estudo em curso na Islândia sobre rastreio de MGUS, ainda não publicado [7]. Foram excluídos os pacientes com MGUS IgM por ser rara a progressão para mieloma múltiplo. Investigação medular foi feita em todos os pacientes. A calculadora estima o risco de o paciente ter um smoldering mieloma, o que nesse contexto significa mais 10% de plasmócitos na medula óssea. Os autores do estudo calcularam a especificidade e a sensibilidade para várias estimativas de risco. Considerando um estimativa de risco de 10% ou mais de ter smoldering mieloma, a ferramenta teve um valor preditivo de 96%.

Estima-se que, em comparação com a calculadora, o modelo da Mayo Clinic indicaria mais biópsias. A ferramenta IStopMM conseguiria evitar 130 a 300 procedimentos a cada 1000 pessoas, em comparação com o modelo da Mayo, sem perder um único diagnóstico de mieloma múltiplo.

Apesar dos resultados, o trabalho possui algumas limitações. A população é pouco diversa geneticamente (apenas islandeses) e os resultados devem ser confirmados em outras amostras populacionais. Além disso, os participantes do estudo vieram de um de rastreio populacional de MGUS. Isso difere do diagnóstico de MGUS da prática clínica, já que não há recomendação de eletroforese de proteínas para rastreio de neoplasias hematológicas em pacientes assintomáticos. A identificação da proteína monoclonal frequentemente é um achado acidental. Ocorre na investigação de doenças ou quando é solicitado para pacientes assintomáticos de rotina [8, 9, 10].