Intoxicações Ameaçadoras à Vida

Criado em: 22 de Julho de 2024 Autor: Tiago Lima Arnaud

Intoxicação crítica é aquela que leva a parada cardíaca, choque refratário ou outra condição com ameaça de parada cardíaca. Quando essas situações críticas ocorrem por intoxicações, a conduta costuma diferir do habitual. A American Heart Association (AHA) publicou uma atualização recente sobre esse tema [1]. O tópico intoxicações ameaçadoras a vida - diretriz AHA 2023 traz os principais pontos da diretriz.

Identificação da intoxicação e suporte inicial

Cerca de 90% das mortes por intoxicação são não intencionais [2]. O tratamento das intoxicações tem três pilares:

  • Prevenção de exposição adicional ou remoção do tóxico quando possível.
  • Tratamento de suporte - manejo das disfunções orgânicas, BLS e ACLS.
  • Antídotos/descontaminação - administração de medicações ou terapias extracorpóreas que revertam, diminuam ou eliminem o efeito tóxico em seu alvo molecular.

O tratamento e a estabilização frequentemente ocorrem antes da identificação do tóxico. Sinais e sintomas relacionados a substâncias específicas formam síndromes (toxíndromes) que permitem inferir o tipo de intoxicação. Essas síndromes possibilitam o tratamento presuntivo enquanto mais informações são adquiridas. O Caso Clínico #11 discute a abordagem do paciente com intoxicação exógena.

A terapia de suporte do paciente crítico tem prioridade sobre a identificação do tóxico ou administração de antídotos. Recomenda-se a abordagem ABCDE modificada com considerações toxicológicas, incluindo manejo da via aérea, suporte hemodinâmico e correção de distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos. O tópico "Intubação por Rebaixamento e Manejo da Via Aérea na Intoxicação" detalha o manejo da via aérea no paciente intoxicado.

A diretriz discute bastante sobre a ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea veno-arterial) nas intoxicações. Apesar das evidências serem de estudos observacionais, a ECMO parece ser bem indicada no tratamento de duas situações:

  • Choque cardiogênico persistente ou parada cardiorrespiratória devido intoxicação refratária às demais medidas de tratamento.
  • Arritmias persistentes devido à intoxicação quando outras medidas de tratamento falharam.

A emulsão lipídica 20% fica bem indicada nas intoxicações por anestésicos locais, em especial a bupivacaína. A diretriz recomenda não utilizar de rotina nas intoxicações por betabloqueadores (BB) e bloqueadores de canais de cálcio (BCC) [1]. O papel da emulsão lipídica nos pacientes críticos com intoxicação por BB e BCC que não responderam a outras medidas ainda é incerto.

O contato com o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da região em que ocorreu o evento faz parte do atendimento ao paciente intoxicado. O CIATox auxilia e respalda a condução do caso. Uma lista completa com o telefone de contato de cada unidade pode ser encontrada neste link do CIATox do site do ministério da saúde.

Tabela 1
Antídotos
Antídotos

A tabela 1 resume os antídotos para as intoxicações específicas.

Betabloqueadores e bloqueadores de canais de cálcio

A intoxicação por BB e BCC causa hipotensão e bradicardia por redução da contratilidade miocárdica. Podem estar presentes rebaixamento do nível de consciência e disglicemias. Enquanto na intoxicação por BB acontece hipoglicemia, os BCC levam à hiperglicemia, o que pode ajudar na diferenciação entre esses dois agentes [3].

O manejo da hipotensão deve ser feito inicialmente com cristaloides, seguido de vasopressores para manter pressão arterial média > 65 mmHg. Uma das características da intoxicação por essas drogas é a hipotensão refratária. A diretriz recomenda a insulinoterapia euglicêmica em pacientes com hipotensão refratária, seja no momento da introdução do vasopressor ou após, caso não haja resposta aos vasopressores.

A ultrassonografia a beira leito (POCUS) cardíaco pode ajudar a guiar as medidas terapêuticas da seguinte maneira:

  • Contratilidade reduzida: insulinoterapia euglicêmica em altas doses, glucagon (na intoxicação por BB), cálcio (na intoxicação por BCC), noradrenalina;
  • Contratilidade normal: expansão volêmica com cristaloides;
  • Contratilidade aumentada e pré-carga normal: noradrenalina.

Caso haja indisponibilidade do POCUS cardíaco, o paciente crítico deve receber todas as medidas disponíveis de forma simultânea. O manejo da bradicardia segue o algoritmo do suporte avançado de vida (ACLS).

A hemodiálise está indicada em intoxicações por atenolol e sotalol que não responderam às demais medidas.

Opioides

A intoxicação por opioides pode ocorrer por sobredosagem de medicações com prescrição médica, mas nos EUA o uso recreativo é a causa mais comum de morte associada a essa intoxicação [4]. Entre os principais fatores de risco para essa intoxicação, existem duas categorias:

  • Relacionados ao opioide: alta dose, alta potência (fentanil), meia-vida longa (metadona).
  • Relacionados ao paciente: uso concomitante de sedativos-hipnóticos (benzodiazepínicos), doenças
  • psiquiátricas, cessação recente de medicamentos para quem já tem transtorno por uso de opioides.

A tríade clássica da toxíndrome por opioides é composta por:

  • Estado mental alterado (depressão do nível consciência, euforia nos momentos iniciais);
  • Miose bilateral;
  • Depressão respiratória;

A ausência de miose não exclui essa intoxicação. Fatores como hipóxia, intoxicação simultânea por simpatomiméticos (cocaína, anfetaminas) e outros medicamentos (como atropina em cuidados paliativos) podem causar midríase neutralizando a miose.

A depressão respiratória induzida por opioides é a causa mais comum de morte nesse contexto. Bradipneia e ritmo respiratório irregular ocorrem inicialmente, evoluindo para parada respiratória e cardíaca se não tratada precocemente (fluxograma 1).

Fluxograma 1
Intoxicação por opioides
Intoxicação por opioides

Na depressão respiratória, a prioridade é o manejo da via aérea com dispositivo bolsa válvula-máscara (DBVM ou Ambu®) e administração do antídoto naloxona. Já na PCR, o objetivo é fornecer o suporte básico de vida com foco inicial em compressões e ventilações efetivas, devendo a naloxona ser considerada após essas medidas estarem estabelecidas.

Benzodiazepínicos

A intoxicação por benzodiazepínicos é comum, mas situações ameaçadoras à vida por hipoventilação, instabilidade hemodinâmica ou PCR com uso isolado dessa classe medicamentosa são raras [5, 6]. As principais características dessa intoxicação são:

  • Depressão leve do nível de consciência (letargia, sonolência, fala arrastada, comprometimento cognitivo) e ataxia;
  • Hipotonia e hiporreflexia;
  • Sinais vitais frequentemente são normais - hipotensão é incomum;
  • Depressão respiratória - rara em intoxicação isolada.

Quando há sintomas graves (coma, depressão respiratória, hipotensão), deve-se considerar ingestão de quantidades exorbitantes e principalmente a co-ingestão de outro tóxico, como opioides.

Os cuidados de suporte são a base do tratamento, até que os efeitos da intoxicação sejam revertidos. Raramente é necessária intubação orotraqueal.

O flumazenil é um antagonista competitivo no receptor GABA que pode reverter a depressão do nível de consciência por benzodiazepínicos. A medicação pode precipitar crises convulsivas (especialmente com outros fatores que diminuam limiar convulsivo), abstinência refratária a benzodiazepínicos e arritmias, habitualmente com outras drogas como tricíclicos. Além disso, principalmente quando há intoxicações mistas, a depressão respiratória pode não ser revertida somente com o flumazenil. Caso haja suspeita de intoxicação por opioides associada, a administração de naloxona tem prioridade.

O flumazenil pode ser considerado em pacientes com depressão grave do SNC induzida por benzodiazepínicos que não tenham anormalidades no eletrocardiograma, que não sejam usuários crônicos de benzodiazepínicos e que os sinais vitais estejam normais. No perioperatório em que há sedação excessiva, o uso também está indicado. Diferente da naloxona, o flumazenil não tem papel na parada cardiorrespiratória.

Outros destaques da diretriz

O bicarbonato é recomendado para arritmias ameaçadoras à vida causadas por cocaína ou medicações com ação de bloqueio de canal de sódio. Algumas medicações com esse efeito são lamotrigina, antidepressivos tricíclicos e venlafaxina (tabela 2).

Tabela 2
Bloqueadores de canais de sódio e medicações que podem causar bloqueio dos canais de sódio
Bloqueadores de canais de sódio e medicações que podem causar bloqueio dos canais de sódio

Em pacientes intoxicados por simpatomiméticos, como anfetaminas e alguns canabinoides sintéticos (como K2 e K9), é recomendado o uso de sedativos quando há agitação intensa. Nesse contexto, os sedativos (como benzodiazepínicos e antipsicóticos) ajudam no controle de hipertermia, acidose e rabdomiólise. Em pacientes com hipertermia ameaçadora a vida é recomendado resfriamento externo.

Em Tempo

Atualização sobre Pré-Oxigenação: o Estudo PREOXI

Criado em: 22 de Julho de 2024 Autor: João Mendes Vasconcelos

A pré-oxigenção na intubação de sequência rápida foi abordada no tópico Pré-Oxigenação e Oxigenação Apneica na Intubação. O estudo PREOXI, publicado no New England Journal of Medicine (NEJM) em junho de 2024, motivou uma nova visita a esse tema. Este tópico aborda os resultados do estudo [1].

Pré-oxigenação: VNI e máscara de oxigênio

Hipoxemia está associada à parada cardiorrespiratória e morte no período de peri-intubação. A maneira de minimizar esses eventos nesse período é realizar uma pré-oxigenação de qualidade. Apesar de a pré-oxigenação ser uma prática estabelecida, a melhora maneira de realizá-la ainda não está definida.

Alguns autores recomendam métodos diferentes conforme o risco de hipoxemia [2]. Dados de estudos internacionais indicam que a pré-oxigenação é feita na maioria das vezes com máscaras de oxigênio, sendo a minoria utilizando a ventilação não invasiva (VNI). Acredita-se que a VNI seja capaz de atingir uma melhor pré-oxigenação, aumentando o tempo de apneia segura, mas os estudos não são consensuais [3]. O estudo PREOXI foi feito para comparar a VNI com métodos mais comuns de pré-oxigenação.

O estudo PREOXI

O estudo PREOXI foi um ensaio clínico randomizado que comparou a VNI e máscara de oxigênio como métodos de pre-oxigenação para intubação de sequência rápida (ISR) [1]. Os pacientes eram adultos submetidos a ISR no departamento de emergência ou na UTI. O desfecho avaliado foi incidência de hipoxemia, definida como saturação menor ou igual a 85% ocorrendo após a infusão do sedativo até dois minutos após a intubação orotraqueal.

De um total de 4460 pacientes que entraram no critério de inclusão, apenas 1300 foram randomizados. Residentes ou fellows realizaram 85% das intubações. Outras características do estudo, incluindo os motivos de exclusão e características da intubação, estão na tabela 1.

Tabela 1
Características selecionadas do estudo PREOXI.
Características selecionadas do estudo PREOXI.

Houve diferença no desfecho primário favorecendo a VNI. Hipoxemia ocorreu em 9,1% dos pacientes do grupo VNI contra 18,5% no grupo máscara de oxigênio (diferença de -9,4%, IC 95% de -13,2% - 5,6%, p < 0,001). Ocorreu uma parada cardiorrespiratória no grupo VNI e sete no grupo máscara de oxigênio. Não houve diferença significativa em eventos aspirativos.

Uma das críticas ao trabalho é o fornecimento de pressão positiva entre a administração do sedativo e a laringoscopia. No grupo VNI, 88% receberam pressão positiva, contra 31% no grupo máscara de oxigênio (tabela 1). Isso pode ter aumentado a ocorrência de hipoxemia no grupo máscara de oxigênio, favorecendo a VNI. O mesmo grupo de pesquisa do PREOXI publicou em 2019 o estudo PreVent [4], mostrando redução de hipoxemia sem aumento de eventos aspirativos com ventilações aplicadas com o dispositivo bolsa válvula máscara entre o sedativo e a laringoscopia.

O grande número de pacientes elegíveis, porém excluídos, mostra que os resultados não podem ser aplicados a todos. Os que estavam agitados poderiam ter realizado intubação em sequência atrasada [5].

Apesar das críticas, os resultados colocam a VNI como o método que fornece a pré-oxigenação de melhor qualidade desde que existam condições para a sua aplicação. Considerando o uso racional de recursos, será que todos os pacientes precisam dessa técnica? Como seria o desempenho da VNI quando comparada ao cateter nasal de alto fluxo? Essas ainda são perguntas sem respostas.

Em Tempo

Atualização sobre Antibiótico em Infusão Estendida: Estudo BLING III

Criado em: 22 de Julho de 2024 Autor: Frederico Amorim Marcelino

A infusão estendida ou contínua de antibióticos foi abordada no tópico Antibióticos em Infusão Estendida versus Intermitente. Este tópico de atualização traz um resumo do estudo BLING III, publicado em junho de 2024 no Journal of the American Medical Association (JAMA) com novidades sobre o tema [1].

A recomendação da Surviving Sepsis Campaign

As diretrizes de sepse da Surviving Sepsis Campaign de 2021 recomendam o uso de antibióticos em infusão estendida ou contínua para o tratamento de pacientes com sepse [2].

A recomendação é baseada em uma meta-análise e revisão sistemática de 2018 que encontrou diminuição de mortalidade com o uso dessa estratégia [3]. Contudo, estudos randomizados não encontraram essa diferença. Diante da evidência inconclusiva, o estudo BLING III foi idealizado.

O estudo BLING III

O BLING III foi um ensaio clínico randomizado que selecionou 7202 pacientes internados em UTI com diagnóstico sugestivo de sepse nas últimas 24 horas e que iniciaram tratamento com meropenem ou piperacilina com tazobactam. Foram incluídas 104 UTIs de sete países diferentes, sem cegamento. O grupo intervenção recebeu antibioticoterapia em infusão contínua, enquanto o grupo controle em infusão intermitente.

O desfecho primário avaliado foi mortalidade em 90 dias. Os desfechos secundários foram mortalidade em UTI ou durante internação hospitalar, aquisição de bactérias multi-resistentes ou infecção por Clostridioides difficile. Também foi avaliada a cura clínica, considerada como término do tratamento antimicrobiano em 14 dias sem necessidade de iniciar novo curso de antibioticoterapia após 48 horas.

Os principais sítios de infecções foram pulmonares (59,5%), intra-abdominal(13%) e corrente sanguínea (8%). A origem da admissão em UTI incluiu sala de emergência (34%), enfermaria (29%), centro cirúrgico após cirurgia de emergência (20,5%) e após cirurgia eletiva (7,5%). A mediana do tempo de internação até começar a randomização foi de 25 horas.

Considerando o desfecho primário, a mortalidade no grupo infusão contínua foi de 24,9% e no grupo intermitente de 26,9%. Essa diferença não teve significância estatística (diferença de -1,9%, IC 95% de -4,9% - 11%, p = 0,08). Já a cura clínica demonstrou significância estatística, sendo maior no grupo infusão contínua (55,7% versus 50%, diferença de 5,7%, IC 95% de 2,4 a 9,1%, p < 0,001). Os outros desfechos secundários foram similares nos dois grupos. Um paciente do grupo infusão contínua apresentou encefalopatia, que foi associada ao meropenem.

Meta-análise e revisão sistemática

Em conjunto com o BLING III, o JAMA também publicou uma nova revisão sistemática e meta-análise comparando infusão estendida/contínua com infusão intermitente para o manejo de pacientes com sepse [4]. Foram 17 estudos randomizados avaliados, incluindo o BLING III. A maioria dos estudos comparou apenas a infusão contínua com a estratégia de doses intermitentes. Meropenem e piperacilina com tazobactam foram os antibióticos mais estudados.

Na avaliação, o uso de antibióticos em infusão contínua foi associado à diminuição de mortalidade em 90 dias. O NNT estimado é de 26. A estratégia também foi associada a maior probabilidade de cura clínica.

Assim como as evidências anteriores, a meta-análise encontrou um efeito não demonstrado nos ensaios clínicos randomizados. Essa diferença pode ocorrer pelo tamanho do estudo, ou seja, se mais pacientes fossem incluídos nos ensaios clínicos, o efeito poderia ser encontrado. Pelo mesmo motivo, o tamanho do efeito deve ser pequeno, já que tantos pacientes são necessários para torná-lo evidente.

O custo de implantar infusão contínua nos hospitais, além do aumento de trabalho de equipes como enfermagem e farmácia, não foram avaliados nos estudos. Essas são considerações importantes ao avaliar a inclusão dessa medida em protocolos institucionais.

Síndromes e Cenários

Doença Mista do Tecido Conjuntivo

Criado em: 22 de Julho de 2024 Autor: Ingrid Fröehner

A doença mista do tecido conjuntivo (DMTC) engloba um grupo heterogêneo de pacientes com apresentações e evoluções diferentes. Existe incerteza sobre o diagnóstico e prognóstico dessa condição e um estudo de coorte recente ajudou a caracterizar melhor essa entidade clínica [1]. Este tópico traz os principais aspectos clínicos da doença e os resultados do estudo.

Doença mista, doença do tecido conjuntivo indiferenciada e síndromes de sobreposição

A doença mista do tecido conjuntivo (DMTC) é caracterizada pela presença de anticorpo anti-RNP associado a um misto de sintomas clínicos também observados em outras doenças do tecido conjuntivo, como lúpus eritematoso sistêmico (LES) e esclerose sistêmica. Os sintomas podem surgir em um período prolongado, dificultando o diagnóstico. Outras duas condições que podem ser confundidas com DMTC são a doença do tecido conjuntivo indiferenciada (DTCI) e as síndromes de sobreposição.

  • DTCI: sinais e sintomas de doenças inflamatórias do tecido conjuntivo (ou colagenoses), mas que ainda não preenche critérios diagnósticos de uma condição específica. Alguns pacientes com DTCI evoluem para uma doença específica com o tempo, enquanto outros permanecem de forma indiferenciada, e uma menor parte tem remissão [2, 3].
  • Síndrome de sobreposição: sinais e sintomas que preenchem critérios para duas ou mais doenças do tecido conjuntivo ao mesmo tempo. Exemplos são o rhupus (artrite reumatoide e LES) e escleroderma-LES.
Tabela 1
Síndromes do tecido conjuntivo diferenciada, síndrome de sobreposição e síndromes do tecido conjuntivo indiferenciado.
Síndromes do tecido conjuntivo diferenciada, síndrome de sobreposição e síndromes do tecido conjuntivo indiferenciado.

Existe controvérsia na literatura sobre a definição de DMTC. Primeiro, há dúvida se a doença pode ser considerada uma entidade separada ou uma manifestação inicial de outra doença reumatológica. Segundo, é difícil diferenciar DMTC das síndromes de sobreposição de duas ou mais doenças reumatológicas (como esclerose sistêmica e LES). Apesar do debate, a maioria dos autores considera DMTC uma doença do tecido conjuntivo específica, tendo associação com HLA específicos [4-6]. Esses termos compartilham características e a tabela 1 mostra a diferença entre eles.

Sintomas e diagnóstico de doença mista do tecido conjuntivo

O estudo publicado no Journal of Internal Medicine sobre as características clínicas e epidemiológicas da DMTC foi uma coorte retrospectiva francesa multicêntrica, realizada entre 1980 e 2022. Foram incluídos 330 pacientes que preenchiam um dos quatro critérios diagnósticos de DMTC (Sharp, Kasukawa, Alarcon-Segovia e Kahn) e que inicialmente não preenchiam os critérios atuais para outras doenças do tecido conjuntivo [1].

A média de idade ao diagnóstico foi de 35 anos, com 88% dos pacientes sendo mulheres caucasianas. O tempo médio entre o primeiro sintoma e o diagnóstico de DMTC foi de 10 meses.

A apresentação clínica inicial da DMTC geralmente inclui sintomas inespecíficos como febre baixa, artralgia e fadiga [4]. Com o tempo, desenvolvem-se sintomas mais específicos, que afetam diversos sistemas. Os sintomas mais prevalentes foram fenômeno de Raynaud (91%), artralgias (83%), dactilite (46%) e mialgias (31%) [1]. O tópico "Fenômeno de Raynaud - Tratamento e Inibidores da Fosfodiesterase 5" explica mais detalhes sobre dessa condição. Características clínicas menos comuns foram hipertensão pulmonar (3,0%) e neuralgia do trigêmeo (3,3%). Porém, estes sintomas estão presentes em alguns critérios diagnósticos.

Critérios diagnósticos e curso clínico da doença mista do tecido conjuntivo

Existem cinco critérios diagnósticos e não há consenso sobre qual deles utilizar. Todos consideram a presença de anticorpos U1-RNP como critério obrigatório. O anticorpo também é encontrado em 13% dos pacientes com LES, 10% com esclerodermia e até em indivíduos saudáveis. A distinção entre U1-RNP e outros anticorpos, como os anti-Sm, é um desafio devido à reatividade cruzada e ausência de padronização da técnica dos exames [7]. Aproximadamente 20% dos pacientes com DMTC apresentam anti-dsDNA e anti-Sm, dificultando a distinção entre DMTC e LES [4, 8]. Os critérios diagnósticos estão descritos na tabela 2.

Tabela 2
Diferentes critérios diagnósticos da doença mista do tecido conjuntivo.
Diferentes critérios diagnósticos da doença mista do tecido conjuntivo.

O critério mais recente é baseado em uma coorte japonesa publicada em 2019. Esses critérios são divididos em manifestações comuns, manifestações imunológicas, envolvimento orgânico característico e manifestações de sobreposição [9]. Além de apresentarem maior sensibilidade diagnóstica (90,6%), trazem a consideração importante de cautela diagnóstica quando o paciente apresenta anticorpos anti-DNA, anti-scl70 ou anti-RNA, pois são específicos de outras doenças reumatológicas.

Outros dados da coorte francesa em relação ao curso clínico da doença mostram que parte dos pacientes inicialmente com o diagnóstico de DMTC evoluem com critérios de uma doença do tecido conjuntivo específica [1]. Em um acompanhamento médio de 8 anos, 26% dos pacientes evoluíram com critérios de uma doença do tecido conjuntivo específica nos primeiros 5 anos, principalmente LES ou esclerose sistêmica. Esses pacientes foram chamados de progressores. Sintomas mais associados à progressão incluíram aumento da parótida (para Sjogren) e alterações na capilaroscopia e doença intersticial (para esclerose sistêmica). Não foi encontrado nenhum fator preditivo para progressão para LES.

Acompanhamento e tratamento

Após o diagnóstico, alguns especialistas recomendam a realização de exames para identificar apresentações associadas à maior gravidade da doença: doença pulmonar intersticial e hipertensão pulmonar. Provas de função pulmonar são importantes para detectar sinais de doença intersticial pulmonar, como redução da capacidade vital forçada (CVF) e da capacidade pulmonar total (CPT), além da difusão de monóxido de carbono reduzida [4]. Outros exames incluem tomografia pulmonar de alta resolução e ecocardiograma, ambos visando detectar alterações de doença intersticial e hipertensão pulmonar. A capilaroscopia periungueal ajuda a avaliar o risco de desenvolvimento de úlceras digitais e de hipertensão arterial pulmonar [4, 10].

O tratamento de DMTC é individualizado conforme a manifestação clínica [11]. A estratégia de imunossupresão é derivada dos estudos com outras doenças inflamatórias do tecido conjuntivo. Corticoides e outros imunossupressores são a terapia habitual. Para doença intersticial grave, sugere-se ciclofosfamida. Quando presente, recomenda-se o tratamento sintomático do fenômeno de Raynaud [6]. O tópico "Fenômeno de Raynaud - Tratamento e Inibidores da Fosfodiesterase 5" revisa o tratamento dessa condição.

O prognóstico de DMTC varia conforme as apresentações da doença. A taxa de mortalidade varia de 3% a 10% e os resultados da coorte francesa identificaram hipertensão pulmonar e doença pulmonar intersticial como as principais causas de morte. Em comparação com os pacientes que evoluem para outra doença do tecido conjuntivo, os que permanecem com o diagnóstico de DMTC tem melhor prognóstico, pois atingem maiores taxas de remissão (52% vs 26%) [1].